domingo, 18 de abril de 2021

Meu Ser no Mundo: até onde me leva minha memória na busca de vivências

 

Imagem com a gata Maria Eugênia apresentando o conteúdo Meu Ser no Mundo: até onde vai a memória na busca de vivências?
Meu Ser no Mundo é o limite de minha memória. É lá onde param as minhas
vivências na busca de mim mesma.

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MEU SER NO MUNDO 

ATÉ ONDE ME LEVA MINHA MEMÓRIA NA BUSCA DE VIVÊNCIAS


A CALÇADA E A RUA SOB O NEVOEIRO

O dia acabara de amanhecer. Ainda se podia ver por detrás dos matagais distantes um nevoeiro pálido a definhar mais e mais. A anunciar que a noite se findava. A ceder lugar aos primeiros raios de sol que logo atravessariam ruas, becos e ruelas da cidade.  Na rua que dividia os dois lados da cidade eram os resquícios da noite que ainda se via. Uma penumbra persistente a se dispersar pelas paredes das casas e se alojar entre uma calçada e outra. Era o que restava da solidão da noite a se mostrar naquela rua que parecia tão só.

Da calçada onde eu estava eu olhava aquele irromper do dia. Mas sem me dá conta de mim mesma, O alvorecer de mais um dia da minha ainda tão tenra vida. Tentava apreender tudo o que meus olhos podiam alcançar naquele meu campo de vista ainda tão frágil. De tão pueril. Mas certamente não vislumbrava nada além do que o meu estranhamento diante daquela penumbra que atravessava o meu olhar. Aquele irromper da aurora tão meio escuro de uma manhã que não se decidia a se mostrar completa. Uma rua solitária que nenhum transeunte parecia querer enfrentar naquele instante. Aquele nevoeiro disperso que não me deixava ver as casas do outro lado da rua. As casas que hoje sei estavam lá. E nenhum daqueles raios de sol que se mostravam ao longe. Aqueles raios que pareciam não querer adentrar aquelas paragens para anunciar o novo dia com sua claridade devida.

Eu não sabia. Nem poderia saber. Minha existência ainda tão parca de nada poderia atinar. Nem mesmo da minha estada naquela calçada. Daquele momento sozinha à beira daquela rua dominada pelo silêncio. Era só o que se ouvia. De resto, só o nevoeiro que a escondia. Mas dele também de nada eu parecia dar conta. Não por mim mesma. Não naquele instante. Nem naqueles tempos. Talvez nem noutros tempos próximos ou distantes. Mas seria preciso que se corresse o tempo para que eu própria tentasse buscar as minhas respostas. Somente o tempo no seu transcorrer e as marcas em mim deixadas é que me diriam se eu daria conta ou não daquele instante. Daquela vivência que de tão frágil parecia não ir além daquele final de rua cujo nevoeiro não me deixava ver.


REMINISCÊNCIAS: EM BUSCA DA VIVÊNCIA PRIMEIRA

O tempo correu no seu curso devido. Um voo a asas largas entre o instante na calçada e aquele em que eu me encontrava naquele instante triturando os meus pensamentos. No quarto onde eu estava, somente o gemido quase inaudível do balançar da rede a me embalar. A acolher meus pensamentos. Num impulso, um socar a parede com a ponta do pé para ver a rede se lançar no ar. No outro, uma canoa a flutuar no meio do quarto. Um arco do tipo pingue-pongue com ares de bumerangue.

Aquela rede meio de frente para a janela era o meu fiel depositário de minhas reminiscências. Meu porto seguro de muitas tardes e noites. De minhas buscas de mim mesma. De minhas leituras de mundo. O mundo que parecia se acomodar aos meus olhos começava e terminava bem ali. Entre a grade da janela e o muro da divisa que me acostumara a ver pelo meu lado de dentro. A minha janela para o mundo. Como eu pensava.

Mas era o mundo que me transportava. Que me levava e trazia. Que me fazia visitar recôncavos distantes. Ainda que sob as folhas de um livro. De uma revista. De um quadrinho. O mundo que me levava a outras paragens. Como naquele momento. Eu à cata de mim mesma nas asas das minhas recordações. No voar da minha imaginação. Pouco me importava se o sol queimava lá fora. Se a lua se escondia sob as lâmpadas das ruas mal-acabadas. Se a chuva molhava o banco quebrado da praça.  Se o transeunte atravessava os buracos no asfalto. Se o gemido cortava o silêncio em prantos inaudíveis. De nada eu dava conta. Não naquele instante. Não da minha janela para o mundo.

Somente o estar comigo nas buscas de mim mesma me importava. Voltar a lugares que nem sabia quais. Mas minha memória me dizia. Lugares que eu quase nem dava conta de mim. Lá onde ficara o meu alvorecer. O início de minhas pegadas na estrada. Tão distante da minha janela para o mundo daquele momento. Mas nem foi preciso invocar à exaustão a minha memória na busca do que lá deixei.

Bastou eu abrir as portas do meu querer para as lembranças responderem aqui estamos. Carreadas na força de meus pensamentos, eis o meu mundo de vivências. Afinal, ao remexer a nossa memória, o nosso encontro não é com nós mesmos? Não é lá onde encontramos os nossos eus perdidos? Os pedaços de nós mesmos que por lá ficaram? Isolados ou em meio a outros tantos eles e elas? Lá onde nos defrontamos com os nossos monstros? Ou tecemos os fios que não se ligaram? Mas não é lá, onde encontramos as respostas do que perdemos ao longo da estrada? Não é lá, no mundo das vivências que não se mostram e das que saltam aos olhos?

Então naquele momento eu me encontrava à procura das minhas. À cata da minha aurora. Da minha vivência mais antiga. Aquela do meu principiar. O pontapé na parede levava a força de meus pensamentos. A rede revoava no ar enquanto eu mergulhava mais e mais à procura de minha parte a primeira da minha vida. Aquela que me daria ciência de mim mesma. Que eu poderia encontrar nas minhas reminiscências. Então me encontrei no prenúncio daquela manhã ainda sem sol. Naquela calçada onde intrigada eu inquiria aquela rua tão alheia ao meu olhar. Nem uma gota de pensamento a me dizer o que fazia naquela calçada àquela hora de um dia em seu nascedouro. Então a imaginação correu solta além do que a memória me trazia.

Mas pelo menos uma coisa era certa e dela eu já sabia. Não por minha memória. Não pela minha própria recordação. Mas pela de quem me contara. Aquela calçada era então apenas a divisa de onde eu vinha e para onde eu ia. Eu vinha do lugar onde até então vivera. Do torrão do meu nascimento. Então certamente eu deixava o débil vilarejo que me recebera no mundo. Talvez para nunca mais voltar. Dali a pouco eu estaria então na minha nova casa. Mas de nada disso eu dava conta. Não havia recordação naquele instante que me mostrasse um rumo qualquer. Que me fizesse saber que numa cidade distante dali eu viveria. Disso a idade da minha pequenez não dava conta nem pelo remexer da minha memória. Os outros ou as outras é que me contariam.

O que me despontava então era apenas aquele cenário turvo e esvoaçante que me lembrava uma manhã nas suas primeiras horas. Aquele momento em que quando abrimos a porta observamos o meio escuro lá fora. E vemos o despontar do amanhecer tomando o seu lugar. Afastando a penumbra da noite. Então eram cenas como aquelas o que eu via. Uma névoa esvoaçante escondendo um pequeno vulto na calçada. 

Então lá estava eu a menininha de mim mesma. Tudo muito embaçado no meu recordar. Tênue lembrança. Tanto que não me apraz afirmar aquele paradeiro. Imagino que não estivesse sozinha. Não em idade tão frágil. Não naquele mundo que se prolongava para além da calçada. Embora logo ali se findasse sob o nevoeiro espesso. De tão frágil vivência o meu recordar quase não dava conta. Talvez a minha memória estivesse perdida em meio àquele nevoeiro. Talvez o sol que nunca chegou àquelas paragens é que iluminaria o meu recordar completo.


MEU SER NO MUNDO: O ACONTECIMENTO E O CHOQUE

Minhas lembranças não me davam conta de muitas outras pessoas no meu despontar naquela calçada. Nem de poucas. Nem de uma sequer. Era eu e o mundo lá fora, restrito entre o começo e o fim daquela rua limitada por meu olhar. Eu e o meu ser no mundo no meu principiar. Mas também eu e o meu porvir. Eu e o meu despontar como gente no mundo. O meu despontar numa calçada a ermo.

Mas então naquele momento a minha janela para o mundo me dava conta de mim. Conta do meu para traz. O tanto que eu podia remoer os meus pensamentos em busca de respostas que haviam ficado. Que me revelassem os meus porquês de ser como aprendera a ser. De ver o mundo como aprendera a ver. De pensar como pensava. De entender o sentido das primeiras imagens de minha vida no meu crescimento como gente. Se teriam algum significado para o meu ser pessoa. Que significados teriam para a minha vida o fato de ter se percebido no mundo isolada de demais pessoas? Que nos importa à nossa construção como pessoas se ao nos perceber no mundo nos defrontamos com coisas ou com pessoas? Se estamos sozinhos ou em meio a multidões?

Então permaneço nas asas da minha imaginação. Seguindo caminhos nada trilhados até então. Não por mim. O pontapé na parede faz mais uma vez a rede revoar num arco flutuante no meio do quarto. No seu revoar, sigo embalada em meus pensamentos. Já não são apenas recordações. Mas também inferências que procuram ganhar formas nas mais variadas abstrações que a minha imaginação permite. Sob o meu primeiro olhar como ser no mundo, lá estão na minha memória uma calçada, uma rua e o meu próprio olhar. Imagino o estar na calçada como o estar um degrau acima de uma base. Um lugar fora da rua. Uma zona de segurança. Mas também o prolongamento de uma suposta retaguarda. Uma casa às minhas costas onde certamente estariam as pessoas que me detinham cuidados. Pessoas das quais a minha memória não dera conta.

Na primeira cena de minha vida eu me vejo então sozinha. Cena estanque. Nada de ação de continuidade. Retrato de penumbra. Assim são minhas primeiras lembranças a me revelarem o meu ser no mundo. Um fato, porém, desponta em relevância. Talvez o mais significativo. A saída da casa de minhas origens. A mudança de rumo. A criação de novos itinerários. O momento do choque. Talvez tenha sido esse o momento do meu primeiro choque na vida. Um grande choque. A mudança de casa de onde jamais saíra até então. O se perceber num lugar desconhecido. O meu primeiro acontecimento na vida. Um acontecimento de dantesca luminosidade. Não seria essa uma proeza digna de retidão por minha memória? 

Então da minha janela para o mundo eu sabia. Talvez não fosse tão menininha assim. Talvez já passassem por mim os meus quatro ou cinco anos. Mas não seria essa a idade das aprendizagens significativas? Então! Não seriam essas as imagens a me dizerem alguma coisa sobre mim? As primeiras imagens de minha vida. Uma calçada e uma rua sob intenso nevoeiro. Fora isso, o meu olhar que certamente buscava o inalcançável.

Fora isso, também, as minhas recordações e a minha imaginação se completando na compreensão de mim mesma. Diante de mim eu tinha então o visto e o não visto. O lembrado e o não lembrado. O afirmado e o negado pela memória. A ausência de pessoas nas lembranças que me revelavam como ser no mundo. Ninguém segurando minha mão. A mão de uma menina à beira da calçada meio escondida sob intenso nevoeiro. A memória negada.

Hoje eu sei. Transcorriam os primeiros anos dos mil novecentos e sessenta. Anos de repressão. Tempos de regime militar. Anos de exceção. Política de ditadura. Anos de chumbo como, anos depois, ficariam conhecidos os anos daquela política. Anos nos quais, enquanto alguns matavam ou mandavam matar, algures país a fora, eu nascia. Enquanto uns morriam e se rendiam à tortura, eu despontava no mundo. Lá pelos confins de um chão nativo embrenhado nos matos de um rincão rural de ralas provisões. Hoje eu sei.

Enquanto uns fugiam e se exilavam em terras distantes ou se rendiam a cárceres políticos em lugares afora, eu era levada para a minha nova casa. Mais do que isso o que sabia eu?  Daqueles assuntos de nada eu dava conta. Apenas atravessava a aurora de minha ainda tão tenra vida. Mas nem disso eu dava ciência. Quanto mais dos conflitos da época. As agonias do mundo não se faziam entender por tão parca idade.  Não naqueles tempos de vivências tão pueris. Importava que eu seguia para a minha nova casa. E que no meio do caminho estancara abismada numa calçada. Amedrontada, talvez. Afinal, não é próprio do desconhecido o medo?


Você acabou de conhecer mais um conteúdo do caminho Memórias de Mim.

Espero que tenha gostado e acompanhe os conteúdos da sequência.

A você, os meus agradecimentos

Deus esteja com você!

Sônia Ferreira

Teresina, 18 de abril de 2021.


Imagem da gata Maria Eugênia convidando leitores e leitoras a se inscreverem no blog e o seguirem.
Maria Eugênia: a gata-guia do caminho Memórias de Mim.

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