Meu Ser no Mundo é o limite de minha memória. É lá onde param as minhas vivências na busca de mim mesma. |
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MEU SER NO MUNDO
ATÉ ONDE ME LEVA MINHA MEMÓRIA NA BUSCA DE VIVÊNCIAS
A CALÇADA E A RUA SOB O NEVOEIRO
O
dia acabara de amanhecer. Ainda se podia ver por detrás dos matagais distantes
um nevoeiro pálido a definhar mais e mais. A anunciar que a noite se findava. A
ceder lugar aos primeiros raios de sol que logo atravessariam ruas, becos e ruelas da cidade. Na rua
que dividia os dois lados da cidade eram os resquícios da noite que ainda se
via. Uma penumbra persistente a se dispersar pelas paredes das casas e se alojar
entre uma calçada e outra. Era o que restava da solidão da noite a se mostrar
naquela rua que parecia tão só.
Da calçada onde eu estava eu olhava aquele irromper do dia. Mas sem me dá conta de mim mesma, O alvorecer de mais um dia da minha ainda tão tenra vida. Tentava apreender tudo o que meus olhos podiam alcançar naquele meu campo de vista ainda tão frágil. De tão pueril. Mas certamente não vislumbrava nada além do que o meu estranhamento diante daquela penumbra que atravessava o meu olhar. Aquele irromper da aurora tão meio escuro de uma manhã que não se decidia a se mostrar completa. Uma rua solitária que nenhum transeunte parecia querer enfrentar naquele instante. Aquele nevoeiro disperso que não me deixava ver as casas do outro lado da rua. As casas que hoje sei estavam lá. E nenhum daqueles raios de sol que se mostravam ao longe. Aqueles raios que pareciam não querer adentrar aquelas paragens para anunciar o novo dia com sua claridade devida.
Eu
não sabia. Nem poderia saber. Minha existência ainda tão parca de nada poderia
atinar. Nem mesmo da minha estada naquela calçada. Daquele momento sozinha à
beira daquela rua dominada pelo silêncio. Era só o que se ouvia. De resto, só o
nevoeiro que a escondia. Mas dele também de nada eu parecia dar conta. Não por mim
mesma. Não naquele instante. Nem naqueles tempos. Talvez nem noutros tempos próximos
ou distantes. Mas seria preciso que se corresse o tempo para que eu própria
tentasse buscar as minhas respostas. Somente o tempo no seu transcorrer e as marcas
em mim deixadas é que me diriam se eu daria conta ou não daquele instante. Daquela vivência que de tão frágil parecia não ir além daquele final de rua cujo nevoeiro não me deixava ver.
REMINISCÊNCIAS: EM BUSCA DA VIVÊNCIA PRIMEIRA
O
tempo correu no seu curso devido. Um voo a asas largas entre o instante na
calçada e aquele em que eu me encontrava naquele instante triturando os meus
pensamentos. No quarto onde eu estava, somente o gemido quase inaudível do
balançar da rede a me embalar. A acolher meus pensamentos. Num impulso, um socar
a parede com a ponta do pé para ver a rede se lançar no ar. No outro, uma canoa
a flutuar no meio do quarto. Um arco do tipo pingue-pongue com ares de
bumerangue.
Aquela
rede meio de frente para a janela era o meu fiel depositário de minhas
reminiscências. Meu porto seguro de muitas tardes e noites. De minhas buscas de
mim mesma. De minhas leituras de mundo. O mundo que parecia se acomodar aos
meus olhos começava e terminava bem ali. Entre a grade da janela e o muro da
divisa que me acostumara a ver pelo meu lado de dentro. A minha janela para o
mundo. Como eu pensava.
Mas
era o mundo que me transportava. Que me levava e trazia. Que me fazia visitar
recôncavos distantes. Ainda que sob as folhas de um livro. De uma revista. De
um quadrinho. O mundo que me levava a outras paragens. Como naquele momento. Eu
à cata de mim mesma nas asas das minhas recordações. No voar da minha imaginação.
Pouco me importava se o sol queimava lá fora. Se a lua se escondia sob as
lâmpadas das ruas mal-acabadas. Se a chuva molhava o banco quebrado da praça. Se o transeunte atravessava os buracos no
asfalto. Se o gemido cortava o silêncio em prantos inaudíveis. De nada eu dava
conta. Não naquele instante. Não da minha janela para o mundo.
Somente
o estar comigo nas buscas de mim mesma me importava. Voltar a lugares que nem
sabia quais. Mas minha memória me dizia. Lugares que eu quase nem dava conta de
mim. Lá onde ficara o meu alvorecer. O início de minhas pegadas na estrada. Tão
distante da minha janela para o mundo daquele momento. Mas nem foi preciso
invocar à exaustão a minha memória na busca do que lá deixei.
Bastou
eu abrir as portas do meu querer para as lembranças responderem aqui estamos. Carreadas
na força de meus pensamentos, eis o meu mundo de vivências. Afinal, ao remexer a nossa memória, o nosso
encontro não é com nós mesmos? Não é lá onde encontramos os nossos eus perdidos?
Os pedaços de nós mesmos que por lá ficaram? Isolados ou em meio a outros
tantos eles e elas? Lá onde nos defrontamos com os nossos monstros? Ou tecemos
os fios que não se ligaram? Mas não é lá, onde encontramos as respostas do que perdemos
ao longo da estrada? Não é lá, no mundo das vivências que não se mostram e das que saltam aos olhos?
Então
naquele momento eu me encontrava à procura das minhas. À cata da minha aurora. Da minha vivência mais antiga. Aquela do meu principiar. O
pontapé na parede levava a força de meus pensamentos. A rede revoava no ar
enquanto eu mergulhava mais e mais à procura de minha parte a primeira da minha
vida. Aquela que me daria ciência de mim mesma. Que eu poderia encontrar nas minhas
reminiscências. Então me encontrei no prenúncio daquela manhã ainda sem sol.
Naquela calçada onde intrigada eu
inquiria aquela rua tão alheia ao meu olhar. Nem uma gota de pensamento
a me dizer o que fazia naquela calçada àquela hora de um dia em seu nascedouro.
Então a imaginação correu solta além do que a memória me trazia.
Mas
pelo menos uma coisa era certa e dela eu já sabia. Não por minha memória. Não
pela minha própria recordação. Mas pela de quem me contara. Aquela
calçada era então apenas a divisa de onde eu vinha e para onde eu ia. Eu vinha
do lugar onde até então vivera. Do torrão do meu nascimento. Então certamente eu
deixava o débil vilarejo que me recebera no mundo. Talvez para nunca mais
voltar. Dali a pouco eu estaria então na minha nova casa. Mas de nada disso eu
dava conta. Não havia recordação naquele instante que me mostrasse um rumo
qualquer. Que me fizesse saber que numa cidade distante dali eu viveria. Disso
a idade da minha pequenez não dava conta nem pelo remexer da minha memória. Os
outros ou as outras é que me contariam.
O que me despontava então era apenas aquele cenário turvo e esvoaçante que me lembrava uma manhã nas suas primeiras horas. Aquele momento em que quando abrimos a porta observamos o meio escuro lá fora. E vemos o despontar do amanhecer tomando o seu lugar. Afastando a penumbra da noite. Então eram cenas como aquelas o que eu via. Uma névoa esvoaçante escondendo um pequeno vulto na calçada.
Então lá estava eu a menininha de mim mesma. Tudo muito embaçado no meu
recordar. Tênue lembrança. Tanto que não me apraz afirmar aquele paradeiro. Imagino que não
estivesse sozinha. Não em idade tão frágil. Não naquele mundo que se prolongava
para além da calçada. Embora logo ali se findasse sob o nevoeiro espesso. De tão frágil vivência o meu recordar quase não dava conta. Talvez a minha memória estivesse perdida em meio àquele nevoeiro. Talvez o sol que nunca chegou àquelas paragens é que iluminaria o meu recordar completo.
MEU SER NO MUNDO: O ACONTECIMENTO E O CHOQUE
Minhas
lembranças não me davam conta de muitas outras pessoas no meu despontar naquela
calçada. Nem de poucas. Nem de uma sequer. Era eu e o mundo lá fora, restrito
entre o começo e o fim daquela rua limitada por meu olhar. Eu e o meu ser no
mundo no meu principiar. Mas também eu e o meu porvir. Eu e o meu despontar
como gente no mundo. O meu despontar numa calçada a ermo.
Mas
então naquele momento a minha janela para o mundo me dava conta de mim. Conta
do meu para traz. O tanto que eu podia remoer os meus pensamentos em busca de
respostas que haviam ficado. Que me revelassem os meus porquês de ser como
aprendera a ser. De ver o mundo como aprendera a ver. De pensar como pensava.
De entender o sentido das primeiras imagens de minha vida no meu crescimento
como gente. Se teriam algum significado para o meu ser pessoa. Que significados teriam para a minha vida o fato de
ter se percebido no mundo isolada de demais pessoas? Que nos importa à nossa
construção como pessoas se ao nos perceber no mundo nos defrontamos com coisas
ou com pessoas? Se estamos sozinhos ou em meio a multidões?
Então
permaneço nas asas da minha imaginação. Seguindo caminhos nada trilhados até
então. Não por mim. O pontapé na parede faz mais uma vez a rede revoar num arco
flutuante no meio do quarto. No seu revoar, sigo embalada em meus pensamentos. Já
não são apenas recordações. Mas também inferências que procuram ganhar formas nas
mais variadas abstrações que a minha imaginação permite. Sob o meu primeiro
olhar como ser no mundo, lá estão na minha memória uma calçada, uma rua e o meu
próprio olhar. Imagino o estar na calçada como o estar um degrau acima de uma
base. Um lugar fora da rua. Uma zona de segurança. Mas também o prolongamento
de uma suposta retaguarda. Uma casa às minhas costas onde certamente estariam
as pessoas que me detinham cuidados. Pessoas das quais a minha memória não dera
conta.
Na primeira cena de minha vida eu me vejo
então sozinha. Cena estanque. Nada de ação de continuidade. Retrato de
penumbra. Assim são minhas primeiras lembranças a me revelarem o meu ser no
mundo. Um fato, porém, desponta em relevância. Talvez o mais significativo. A
saída da casa de minhas origens. A mudança de rumo. A criação de novos
itinerários. O momento do choque. Talvez tenha sido esse o momento do meu
primeiro choque na vida. Um grande choque. A mudança de casa de onde jamais
saíra até então. O se perceber num lugar desconhecido. O meu primeiro
acontecimento na vida. Um acontecimento de dantesca luminosidade. Não seria
essa uma proeza digna de retidão por minha memória?
Então da minha janela para o mundo eu sabia.
Talvez não fosse tão menininha assim. Talvez já passassem por mim os meus
quatro ou cinco anos. Mas não seria essa a idade das aprendizagens
significativas? Então! Não seriam essas as imagens a me dizerem alguma coisa
sobre mim? As primeiras imagens de minha vida. Uma calçada e uma rua sob
intenso nevoeiro. Fora isso, o meu olhar que certamente buscava o inalcançável.
Fora isso, também, as minhas recordações e a
minha imaginação se completando na compreensão de mim mesma. Diante de mim eu
tinha então o visto e o não visto. O lembrado e o não lembrado. O afirmado e o
negado pela memória. A ausência de pessoas nas lembranças que me revelavam como
ser no mundo. Ninguém segurando minha mão. A mão de uma menina à beira da
calçada meio escondida sob intenso nevoeiro. A memória negada.
Hoje eu sei. Transcorriam os primeiros anos
dos mil novecentos e sessenta. Anos de repressão. Tempos de regime militar.
Anos de exceção. Política de ditadura. Anos de chumbo como, anos depois, ficariam
conhecidos os anos daquela política. Anos nos quais, enquanto alguns matavam ou
mandavam matar, algures país a fora, eu nascia. Enquanto uns morriam e se
rendiam à tortura, eu despontava no mundo. Lá pelos confins de um chão nativo
embrenhado nos matos de um rincão rural de ralas provisões. Hoje eu sei.
Enquanto uns fugiam e se exilavam em terras
distantes ou se rendiam a cárceres políticos em lugares afora, eu era levada
para a minha nova casa. Mais do que isso o que sabia eu? Daqueles assuntos de nada eu dava conta.
Apenas atravessava a aurora de minha ainda tão tenra vida. Mas nem disso eu dava ciência.
Quanto mais dos conflitos da época. As agonias do mundo não se faziam
entender por tão parca idade.
Não naqueles tempos de vivências tão pueris. Importava que eu seguia para a minha nova casa. E
que no meio do caminho estancara abismada numa calçada. Amedrontada, talvez.
Afinal, não é próprio do desconhecido o medo?
Você acabou de conhecer mais um conteúdo do caminho Memórias de Mim.
Espero que tenha gostado e acompanhe os conteúdos da sequência.
A você, os meus agradecimentos
Deus esteja com você!
Sônia Ferreira
Teresina, 18 de abril de 2021.
Maria Eugênia: a gata-guia do caminho Memórias de Mim. |
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