MINHA MÃE E SUA BANCA DE VERDURAS NO MERCADO
QUANDO O IR AO MERCADO É UM ACONTECIMENTO
Não
era uma manhã como outra qualquer. O sol certamente brilhava lá fora. Mas não o
sol de todas as manhãs. Não o sol que se levantava bem cedo muito além da rua
em frente a nossa casa. E se repetia todos os dias. E se estendia inundando os
matinhos rasteiros que insistiam em cobrir os terreiros da casa. E despontava nas
folhagens do pé de manga e dos pés de cajus bem ali no quintal da nossa casa. E
tornava iguais os cenários de todas as manhãs.
O
sol cujos raios tornavam aquela manhã tão diferente das outras estava era dentro
de mim. Ele que me iluminava a alma e me
inundava o peito numa alegria incontida. O sol que me levaria ao mercado onde
estava a minha mãe e de lá me traria pouco tempo depois. Eu e meu irmão Elói
com as misturas daquele dia. As misturas que nos foram incumbidas buscar como
tarefa a ser cumprida naquela manhã. Do contrário, o nosso de comer daquele dia
estaria comprometido.
Minha
mãe tinha uma banca de verduras num mercado. Por essa razão, jamais eu acordara
de manhã para a encontrar em casa. Não no meu primeiro tempo de menina, quando pouco
ou quase nada da vida eu atinava. O cantar do galo era o seu despertar. E no
bem cedinho do dia ela saía. Rompia o escuro do fim da noite atravessando o
caminho que a levava à luta pela vida naquele tempo. Então quando a madrugada
findava, e o sol raiava, ela já estava de banca montada.
Em
casa, muitas vezes, hoje sei, ficava o nada ou o quase nada para o nosso de
comer daquele dia. Também sua recomendação de que meu irmão Elói fosse ao
mercado buscar alguma coisa de refeição. Era a sua esperança no apuro das
vendas. Essa recomendação certamente despertava em mim o desejo de também ir ao
mercado. Naquela manhã então esse desejo seria satisfeito. Eu iria com meu
irmão Elói.
Por
isso aquele era um dia de festa para mim. Certamente uma festa que só quem
sabia era o meu coração. Só ele sabia dos raios de sol que lhe inundavam. A
satisfação de uma vontade que se realizava com ares de um grande acontecimento em
minha vida. Uma vida que de tão tenra, tão aberta a acontecimentos. E aquele
era um dos primeiros. Talvez por isso tão marcante. Uma marca a atravessar os
meus tempos vindouros e silenciar até o despertar da minha memória por uma
lembrança fortuita.
Uma
lembrança tão frágil, mas tão persistente a me mostrar um retrato de mim num
vestidinho rosa-claro de saia franzida. Alguém me arrumava. Alguém sem rosto,
sem nome, sem nada, mas que ajeitava o meu cabelo. Alguém que nem se mostra em
minha lembrança. Apenas eu em meu caminhar e logo parar para aquele arrumar.
De
tão vaga a lembrança, tão sem forma que nem num quadro cabe. Porque também nem meu
relato lhe retrata bem. Porque lembrança é assim: a imagem simplesmente chega e
tão logo desaparece, como um surgir do nada e para o nada retornar; com um
vácuo antes e um depois. Hoje sei, a pessoa sem forma e sem rosto a me arrumar era
minha irmã Karina, a que cuidava de nós e da casa naquele tempo.
Então
nova lembrança e novo retrato de mim num caminhar destemido e resoluto rumo ao
mercado. Sob os pés, um caminho avermelhado com pedrinhas soltas. Hoje sei, era
uma rua de piçarra, um barro vermelho que caracterizava o solo da região e
originara o nome do bairro e do mercado aonde íamos eu e meu irmão Elói. Talvez
fosse a minha primeira vez naquele caminho. A primeira de algumas outras ainda
naquele tempo. Novos aprendizados se construindo, pegando voo na engrenagem do
conhecimento em franca montagem na minha meninice.
MINHA MÃE E SUA BANCA DE VERDURAS
O
mercado aonde íamos eu e meu irmão Elói ficava no mesmo caminho que passava na
frente da nossa casa. Mas na parte do caminho não mais tortuoso e cheio de
pedras e matos como aquela da nossa casa. Não mais onde se tinha que subir alguma
ladeira e se desviar de galhos de matos na beira do caminho. Era a parte da
piçarra vermelha e não dos pedregulhos. A piçarra que tornava o caminho mais firme
e o caminhar menos incerto.
Quase
chegando no final daquele caminho, o mercado que, hoje sei, era uma casa grande
com várias portas dos lados de fora e dois corredores do lado de dentro. Mas apenas
o lado de dentro e o portão principal de entrada é que dão conta as minhas
lembranças. Era lá dentro onde ficava a banca de minha mãe. As portas de fora
acessavam os comércios das mais variadas coisas e serviços. Hoje sei.
O
portão principal tornara-se a minha referência para chegar à banca de minha mãe
pelas vezes em que lá estive depois daquela primeira. Depois de minhas andanças
pelos entremeios do mercado, era só ver o portão e logo eu me encontrava. Logo
eu sabia o rumo da banca de minha mãe. Uma lembrança tênue me mostra parada
próximo a ele. De lá observando: de um lado, várias barracas e coisas pelo
chão; verduras e legumes e sacos e jacás e gentes entre uma coisa e outra.
Do
outro lado, dois portões largos de acesso ao mercado pelo lado de dentro. A esses
portões seguiam dois extensos corredores separados um do outro por uma
sequência de colunas. Em cada coluna, uma banca de verduras, frutas e legumes. Do
outro lado de cada corredor, os açougues com suas carnes penduradas e os
magarefes chamando os fregueses aos gritos e aos tilintares de facas e facões.
São
cenas tênues que contrastam com a imagem viva em minhas lembranças. Talvez a mais
viva capturada por meu olhar ao atravessar um daqueles portões: minha mãe
sentada ao lado de sua banca encostada à segunda coluna. Cabisbaixa, um braço
cruzado apoiando o outro cuja mão apoiava o queixo. Nenhum freguês. Era aquele
um quadro desolador para mim. O jeito desesperançado de minha mãe. O jeito
sofrido que me acompanharia o olhar por muitos anos da minha vida.
Próximo à
sua banca, logo ali na primeira coluna, a banca de minha tia Moema, irmã de
minha mãe. Majestosa, repleta de frutas e legumes que se esparramavam pelo chão,
porque não cabiam tudo em cima da mesa. Era
tanto que quase não se via minha tia sentada e encostada na coluna. Ela era o
centro daquilo tudo.
A
banca de minha mãe perto à da minha tia parecia nada ou no máximo coisa alguma.
Tudo era minguado. Talvez por isso não havia fregueses. Não havia como competir
com a banca da minha tia. Era lá que os fregueses paravam. Eu não entendia aquela razão. Apenas sentia
nascer em mim um incômodo fincado naquele semblante triste de minha mãe. Tão
fincado que muitas vezes a olhava na esperança de que ele não estivesse lá. Mas
sempre estava.
Em
meio a minhas lembranças me deparo com essa imagem. Eu encostada a uma barraca a
certa distância dos portões de entrada. Talvez ao retornar das minhas andanças pelos
entremeios do mercado. Daquele ponto, eu olhava minha mãe sentada à sua banca de
verduras. O mesmo corpo retraído. A mesma desolação. Talvez eu tentasse
entender o que a vida aos poucos me traria como respostas. Seria preciso o
passar do tempo para eu entender. Assim foi.
Só
tempos depois eu saberia um pouquinho da razão daquele jeito que a tristeza
parecia não largar. Não era a falta de fregueses. Eram mesmo as agruras da vida,
a cruz que de tão pesada lhe tirava o ânimo. Sensível à situação da irmã, minha tia lhe ajudava
no que podia, o que me fez crer que a banca era de produtos fornecidos por ela
como forma de assegurar à minha mãe alguma renda que lhe ajudasse no sustento
da família. Assim era. Tanto que ao longo de sua vida, minha mãe não lhe parou
de agradecer os préstimos.
MINHA TIA
E SUA AJUDA
Não
sei quantas vezes repeti as minhas idas àquele mercado naquele meu tempo de
menina. Só sei que as imagens que me ficaram revelam a silhueta desolada de
minha mãe sentada ao lado de sua banca de verduras. Assim como à entrada do
ponto também me vejo do lado oposto de pé simplesmente olhando de longe aquela
cena das duas bancas com minha mãe sem ânimo e sem fregueses e na banca ao lado
minha tia cercada de muitas frutas, legumes e gentes.
Não
sei o que eu sentia frente àquelas cenas, senão que me incomodavam. Se naquela
idade eu já formulava ideias frente aos incômodos da vida minhas lembranças não
as alcançam. Creio que ainda não atinava para os problemas da vida. Afinal de
contas, meninos e meninas daqueles anos tinham muito com o que brincar e por
ande andar. O andar era sempre um desbravamento.
E
o mercado da Piçarra era assim, um desbravamento. Por isso creio que eu andava
nele junto com outros meninos sem rosto nem face sem nada que os
caracterizasse. Só sei que eu não andava por ele sozinha, mas quando me postava
frente às cenas que me incomodavam eu estava era assim que eu estava porque
elas me faziam parar para melhor as observar. Era passar pelo portão principal
do mercado e parar para olhar minha mãe em sua banca; também era passar pelo
lado oposto e parar para olhar o cenário daquele lado. De ambos os lados a cena
retratava o mesmo quadro, minha mãe desalentada e minha tia empoderada; só o
ângulo mudava com a diferença de que de um lado eu via minha mãe de frente e
minha tia meio de costas e do outro as duas num perfil meio de costas.
Só
anos depois eu entenderia o porquê daquelas cenas. Naquele mercado, minha tia
era referência junto aos trabalhadores de roças de diferentes regiões rurais da
cidade. Eles chegavam de longe com suas cargas e logo a procuravam na certeza
de fazer bom negócio. Deles ela recebia as mercadorias e lhes pagava no
“apuro”. Por isso a sua banca estava sempre muito lotada de coisas verdes entre
frutas e legumes, e sempre cheia de gente entre fregueses e fornecedores. Minha
tia era uma grande empreendedora no seu ramo de vendedora de legumes, frutas e
hortaliças. Minha mãe era a irmã, sua única irmã, a quem não poupava ajuda. Ao
contrário da minha tia, minha mãe não demonstrava tino para aquele fazer. Era
de um jeito acanhado, sem muito trato para aquele negócio. Não sei quantos anos
ela perdurou naquela venda. Só sei que nas minhas primeiras lembranças de
menina ela me aparece assim.
A você, meus agradecimentos!
Deus esteja com você!
Sônia Ferreira
Teresina, 24 de julho de 2021.
Você terminou de conhecer o quarto conteúdo do
Caminho Memórias de Mim.
Espero que tenha gostado e acompanhe os conteúdos
seguintes.
Veja o conteúdo anterior: Meu irmão Elói e o
vento bom de papagaio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário