DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS NO ESTADO DE NATUREZA:
UMA ANÁLISE ENTRE O ESTADO DE GUERRA DOS
JUSNATURALISTAS E AS
SOCIEDADES DA
PRÉ-MONARQUIA FRANCESA*
Resumo:
Este ensaio traz uma reflexão sobre a desigualdade entre os homens e os fatores
que contribuíram com a sua origem e reprodução quando se consolidavam as
relações sociais no momento histórico que antecedeu a instituição do Estado Moderno.
Baseia-se no pensamento de Thomas Hobbes (1988), John Locke (1998) e Jean-Jacques
Rousseau (1999) quanto ao estado de natureza e ao estado de guerra; e no pensamento
de Norbert Elias (1993) quanto à formação do Estado Monárquico. Ao analisar as
ideias desses teóricos, foi possível observar que a realidade econômica, social
e política das sociedades da Pré-Monarquia Francesa do século XII retratadas
por Elias traz o contexto empírico de que se serviram esses clássicos para explicar
ou justificar os fundamentos do Estado. Fundamentos esses ancorados nos ideais
de liberdade, igualdade e propriedade. Trata-se de um estudo comparativo
eminentemente bibliográfico. Sua argumentação se constrói numa associação e
confronto de ideias entre um teórico e outro. No cruzamento das ideias, também se
analisam alguns aspectos referentes à relação igualdade, liberdade, propriedade
e desigualdade entre os homens. Da análise dessa relação emerge a percepção de
que as ideias de igualdade e de liberdade contribuíram sobremaneira com o
surgimento da desigualdade entre os homens. Também a percepção de que a ideia de
trabalho como medida da propriedade terminou por contribuir com a ampliação ou
aprofundamento da desigualdade.
Palavras-Chave:
Locke. Rousseau. Hobbes. Norbert Elias. Jusnaturalistas.
INTRODUÇÃO
A desigualdade é um problema social,
político e econômico em praticamente todos os países. Ainda que se verifiquem
os avanços da ciência e da tecnologia, trata-se de uma questão que se mantém
continuamente em evidência nos indicadores sociais. Estes revelam diferenças
extremas de renda, de escolarização e de oportunidades as mais diversas entre
setores das sociedades e entre alguns países e outros. São disparidades que refletem
um mundo dividido entre ricos e pobres. Um mundo no qual se verifica que os
ricos permanecem sempre ricos e os pobres sempre pobres.
Na avaliação de especialistas, disparidades como essas se ampliaram
em decorrência de acúmulos de problemas sociais não enfrentados em suas épocas.
Com o não enfrentamento devido, esses problemas se aprofundaram, inclusive como
efeitos da própria evolução das relações sociais e das transformações
científicas, tecnológicas e econômicas. Essas transformações registram
progressos consideráveis em diversas áreas, proporcionando o desenvolvimento de
muitos países.
Signatário desse desenvolvimento, o Brasil evidencia realidades econômicas
bastante desiguais. Inclusive, estudiosos referem-se a uma dualidade
brasileira, como se o país representasse dois mundos: enquanto um alcança
níveis consideráveis de desenvolvimento econômico, o outro se constrói em meio
a mazelas as mais variadas, trazendo à cena pública altos níveis de pobreza e
incipientes níveis de desenvolvimento social.
Em tal cenário, uma questão que se revela carente de explicações
refere-se a fatores desencadeadores da desigualdade entre os homens quando,
contraditoriamente, o mundo revela progressos consideráveis em diversas
áreas. Quais fatores, então,
contribuíram com a origem da desigualdade e com a sua reprodução quando a ampliação
das relações entre os homens ocorria nos mesmos contextos de avanços científicos,
tecnológicos e econômicos? Ou seja: quais fatores impediram que esses avanços
favorecessem de algum modo as relações entre os homens? São respostas a essa
questão que este ensaio apresenta; porém, não se reporta à desigualdade em
todas as épocas, mas tão somente na origem do Estado Moderno; mais precisamente
no momento histórico que o antecedeu. Momento esse nos quais os antagonismos e as
adversidades da época tornavam premente uma nova ordem econômica, política e
social. Essa nova ordem que já se gestava nos ideais da conquista do poder pela
burguesia.
Na busca dessas respostas, este ensaio se baseia nas teorias de Sociedade
e Estado dos jusnaturalistas Hobbes (1988), Locke (1998) e Rousseau (1999),
especialmente acerca do estado de natureza; e na teoria de Elias (1993) quanto
à formação do Estado Monárquico. A argumentação se constrói na associação das
ideias desses autores. Nessa associação, tem-se uma análise da relação entre o
estado de guerra concebido pelos clássicos jusnaturalistas e as organizações
políticas dos tempos da pré-monarquia francesa retratadas por Elias (1993).
Trata-se de uma análise ancorada nos seguintes pressupostos: (a)
as guerras que se verificavam entre famílias na França do século XII, quando
províncias e dinastias feudais lutavam entre si na busca de ampliação de
domínios e formação de monopólios (ELIAS, 1993), mantêm estreita relação com os
estados de natureza hobbesiano e lockeano; (b) que foi esse o contexto
econômico, político e social que possibilitou a Locke (1998) os fundamentos de
suas ideias sobre a propriedade particular ao associá-lo a um estado de
natureza hipotético, encontrando neste os fundamentos à nova ordem burguesa,
vista, pelos teóricos da época (inclusive Locke), como condição de
possibilidade de superação da monarquia; e (c) que foi esse mesmo contexto
histórico que motivou a crítica de Rousseau (1999, p. 161) a Hobbes e Locke, ao
afirmar que estes, ao retratar o estado de natureza “[...] falavam do homem
selvagem e descreviam o homem civil”, sugerindo que a realidade da época
retratada por Elias (1993) era a evidência empírica dos estados de natureza
retratados pelos dois clássicos.
Pelo terceiro pressuposto, é possível perceber que, embora com
concepções distintas quanto ao estado de natureza, esses clássicos têm pelo
menos um ponto de entendimento comum. Observando a “linha do tempo”, esse ponto
pode ser evidenciado quando, ao descrever a evolução do “bom selvagem”,
Rousseau (1999) se encontra no mesmo contexto no qual Hobbes (1988) e Locke
(1998) caracterizam o estado de guerra. Esse contexto é precisamente o mesmo momento
histórico de formação do Estado Monárquico retratado por Elias (1993). Nesse
retrato, entre outros aspectos, Elias (1993) destaca as dificuldades das
sociedades da época em estabelecerem governos duradouros e permanentes.
Enfim, é com o olhar voltado para a realidade da França nascente que
os clássicos jusnaturalistas encontram seus fundamentos para a origem do Estado
Moderno. Ao mesmo tempo, evidenciam a compreensão de como as desigualdades se construíam
ou se formavam naquele quadro social da época. O quadro social da França
nascente, que procurava se consolidar como Estado Monárquico embora não tivesse
nada além do que as “Casas do Rei” (ELIAS, 1993) como protótipos de governos.
Para melhor discorrer sobre o objetivo proposto, o de demonstrar
como o surgimento da desigualdade e como ela foi-se corporificando entre os
homens no momento histórico que antecedeu o Estado moderno, este ensaio segue
dividido em duas partes. A primeira apresenta considerações acerca do estado de
natureza, precisamente sobre o estado de guerra. Revela como as ideias de
igualdade e de liberdade contribuíram com o surgimento da desigualdade entre os
homens. A segunda parte demonstra que, ao ser considerado a medida da
propriedade, o trabalho cria as condições de possibilidade para a ampliação da
desigualdade.
Trata-se de um estudo eminentemente bibliográfico, baseado em
obras dos teóricos acima mencionados. A partir de suas ideias acerca do
objetivo proposto, faz-se uma análise comparativa entre um teórico e outro em
aspectos referentes, especialmente, à relação entre igualdade, liberdade, propriedade
e desigualdade entre os homens. É no confronto de ideias nessa relação e na sua
consequente interpretação que se evidenciam paulatinamente os fatores que
contribuíram com o surgimento da desigualdade, tomando-se por base as concepções
de estado de natureza de Hobbes (1988), Locke (1998) e Rousseau (1999)[1].
IGUALDADE E LIBERDADE NO ESTADO DE NATUREZA: OS CAMINHOS DA DESIGUALDADE
Hobbes (1988), Locke (1998) e
Rousseau (1999), procurando compreender e explicar as transformações sociais de
suas épocas, reportam-se a um estado pré-político no qual teriam vivido os
homens numa suposta ou hipotética situação caracterizada como “estado de
natureza”. Em tal estado, os homens seguiriam apenas as suas próprias
determinações. Focalizando esse estado, constroem explicações sobre o campo
social, o surgimento e a organização da sociedade. Demonstram a evolução
original da sociedade e as configurações das primeiras relações entre os
homens.
Na caracterização do estado de
natureza, são centrais nas concepções desses clássicos as ideias de igualdade, de
liberdade e de propriedade. A ideia de igualdade é o ponto de partida para a
manifestação das ações do homem no estado de natureza; a de liberdade é o que
possibilita a escolha da ação e impulsiona o homem à consequente realização num
grau maior ou menor de intensidade; e a ideia de propriedade é o que cabe a
cada homem na sua relação com a natureza, assim como o que condiciona ou
determina a natureza da relação com os outros homens.
A partir dessas ideias é que se verificam as
diferenças de concepções desses três clássicos quanto ao estado de natureza em
relação aos rumos que tomam a igualdade e a liberdade em toda a sua extensão. Da mesma forma, as diferenças quanto à
compreensão de cada um deles acerca das predisposições naturais dos homens.
Predisposições essas que os levariam ao estado de guerra. Essa compreensão coincide
com a própria compreensão dos três quanto ao estado de natureza.
Na sua descrição de estado de natureza, Hobbes (1988) parte do
princípio de que os homens são naturalmente iguais nas faculdades físicas e
intelectuais. Também no mesmo desejo de alcançar o mesmo fim: a conservação da
vida. No entanto, mais do que essas faculdades naturais, o que prevalece mesmo
em termos de igualdade é o direito natural. É esse direito que confere a todos
os homens o mesmo poder de executores da lei de natureza. A igualdade assim
concebida dota o homem de uma liberdade bastante ampla, fundamentada no direito
de natureza, que autoriza todos os homens a “[...] usar seu próprio poder, da maneira
que quiser, para a preservação [...] de sua vida; e consequentemente de fazer
tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios
adequados a esse fim” (HOBBES, 1988, p. 78).
Conforme Hobbes (1988), todos os homens partilham dessa condição
de igualdade natural. No entanto, o meio competitivo no qual desenvolvem suas
relações iniciais na luta pela sobrevivência leva alguns homens a desenvolver
mais as qualidades intelectuais, precisamente às adequadas à “reta razão”, ou
seja, aquelas que melhor atendem à prescrição da lei fundamental de natureza.
Esta, por sua vez, “[...] proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua
vida, ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que
pense poder contribuir melhor para preservá-la” (HOBBES, 1988, p. 78). É nessa
conformidade com a regra que se fundamenta a “crueldade” do homem hobbesiano, o
que se constrói numa tal situação onde o “normal” é atacar, destruir, subjugar,
sair na frente, uma vez que dessa ação depende a própria sobrevivência.
Em tais condições, o estado de natureza é necessariamente um
estado de guerra, no qual o único direito do homem é o direito à vida. Esse
fato coloca todos os homens na mesma condição de igualdade. É essa condição que
faz cada homem reconhecer no outro iguais capacidades de ataque, o que leva a
todos a viver numa situação de inimizade, insegurança e desconfiança
generalizada, proporcionada, exatamente, pela ampla liberdade conferida a cada
um. Uma liberdade praticamente ilimitada, já que a lei de natureza assim a
permite quando ela própria impulsiona cada homem ao ataque.
Assim caracterizado, o estado de guerra hobbesiano identifica-se
empiricamente com a sociedade de Luís VI nos primeiros tempos da Pré-Monarquia Francesa,
sociedade retratada por Elias (1993). Nesta, verificavam-se guerras entre
famílias – as “Casas do Rei” – por ampliação de domínios e de poder. Em tal
sociedade, prevalecia a vontade particular de uma Casa subjugar a outra,
precisamente aquela que lhe despontasse como ameaça ao seu poder. Logo, “[...]
quando um vizinho se expandia e, portanto, tornava-se mais forte, o outro
corria o risco de ser esmagado por ele e de tornar-se seu dependente. Ele tinha
que vencer, a fim de não ser subjugado” (ELIAS, 1993, p. 109).
Então, assim como no estado de natureza hobbesiano, também na
sociedade da Pré-Monarquia Francesa prevalecia igualmente o direito do mais
forte. Direito que autorizava o homem a prejudicar o outro com o uso da própria
força em benefício da própria preservação. Com esse procedimento não se poderia
requerer domínio sobre as coisas, uma vez que só pertencia a cada homem aquilo
que ele fosse capaz de conseguir e somente enquanto o fosse capaz de preservar
pela defesa ou luta contínua (HOBBES, 1988).
Dado a esse direito, conferido pela lei de natureza, subjugar ou
destruir o outro era um procedimento legítimo porque estava em conformidade com
a razão. O contrário e danoso à razão, porque danoso à vida, seria se omitir,
deixar-se subjugar. No entanto, com o direito do mais forte, a igualdade
natural em Hobbes termina por ressaltar a desigualdade entre os homens,
permitindo que esta prevaleça e avance.
Locke (1998), ao contrário, percebia a realidade pré-monárquica
como uma ordem equivocada. O equívoco residia no fato de se tratar de uma ordem
contrária à lei de natureza e ao direito natural por ele concebidos de modo
distinto ao de Hobbes (1988), assim como distinta é a sua concepção de
igualdade natural. Embora proveniente das mesmas faculdades naturais, que se
desenvolvem de forma desigual, a igualdade concebida por Locke (1998) pressupõe
a justa medida, uma vez que, pelo direito à propriedade, nenhum homem poderia
ter mais do que outro. Para Locke, então, a justa medida era o princípio pelo
qual se afirmava a igualdade no estado de natureza.
Assim, ao contrário da igualdade natural hobbesiana, a lockeana
não se voltava para o eu, mas para o outro, pela ideia implícita de
reciprocidade e de solidariedade. Considera que, exatamente por serem os homens
iguais e independentes é que ninguém tem o direito de “[...] prejudicar a
outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posses” (LOCKE, 1998, p. 384), pois,
pela lei de natureza
[...] cada um está obrigado a preservar-se, e não abandonar
sua posição por vontade própria; logo, pela mesma razão, quando sua própria
preservação não estiver em jogo, cada um deve, tanto quanto puder, preservar o resto da Humanidade; e não
pode, a não ser que seja para fazer justiça a um infrator, tirar ou prejudicar
a vida ou o que favorece a preservação da vida, liberdade, saúde, integridade
ou bens de outrem (LOCKE, 1998, p. 385. Grifos do autor).
Dessa forma, a lei de natureza,
assim concebida, limita o direito natural e, assim, restringe a liberdade dos
homens quando os impede de atentar contra a vida, a liberdade e os bens de
outrem. Por essa concepção, nenhuma “Casa do Rei” (ELIAS, 1993) poderia
subjugar outra nem se apropriar de suas propriedades, assim consideradas a
vida, a liberdade e os bens, sob pena de punição. Em Locke (1998), a extensão
da liberdade conferida pela lei de natureza é menos ampla do que em Hobbes
(1998). Assim, a limitação favorece ao homem maiores possibilidades de
convivência e de respeito ao outro, mesmo no estado de natureza.
De outra forma, a compreensão de Rousseau (1999) quanto ao estado
de natureza é particularmente distinta da de Hobbes (1988) e da de Locke (1998).
Estes, para ele, não chegaram a descrever o homem no seu verdadeiro estado
natural. Considera que tanto o homem hobbesiano quanto o lockeano é o homem
inserido na sociedade civil. Segundo ele, “[...] todos, falando incessantemente
de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho, transportam para o estado
de natureza ideias que tinham adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem
e descreviam o homem civil” (ROUSSEAU, 1988, p. 40).
Para retratar então o que seria o verdadeiro estado de natureza, Rousseau
(1999) retrata um momento histórico anterior ao das “Casas do Rei” por
considerar que nas sociedades da Pré-Monarquia Francesa os homens já haviam se distanciado
muito do seu estado natural, já não se verificava mais a igualdade entre eles
como outrora existira. Assim, embora reconhecendo a igualdade natural hobbesiana,
Rousseau (1999, p. 159) caracteriza o homem selvagem não pela igualdade, como o
faz Hobbes, mas a partir da sua desigualdade natural “[...] estabelecida pela
natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo
e das qualidades do espírito e da alma”. Isto por considerar o homem primitivo
numa relação apenas com a natureza, e não com os outros homens.
Na sua evolução, a desigualdade natural agregava novas
características à medida que se fortaleciam as relações entre os homens, cuja
convivência, primeiro em bando, depois em família e em comunidades, levava-os a
desenvolver a capacidade de observação e de reflexão. Com essa capacidade, segundo
Rousseau (1999) os homens começaram a se apreciar mutuamente. Essa apreciação
recíproca tornou alguns homens “mais considerados” do que outros devido ao
reconhecimento de alguns em detrimento de outros com qualitativos do tipo “o mais
belo, o mais forte, o mais hábil ou o mais eloquente”. Esse foi então o “primeiro
passo para a desigualdade e para o vício ao mesmo tempo” (ROUSSEAU, 1999, p.
211).
A ideia de consideração, por sua vez, levou ao desejo de estima
pública, de reconhecimento, como um direito comum a todos os homens. Ancorados
nessa ideia
[...]
qualquer agravo voluntário tornou-se um altraje porque, com o mal que resultava
da injúria, o ofendido nela via o desprezo de sua pessoa, em geral mais
insuportável do que o próprio mal. Foi assim que, punindo cada qual o desprezo
que lhe haviam demonstrado de uma maneira proporcional à importância que
atribuía a si mesmo, as vinganças se tornaram terríveis e os homens
sanguinários e cruéis (ROUSSEAU, 1999, p. 211).
O desejo de consideração demonstra a tendência do homem a atribuir
a si mesmo um valor superior ao que poderia ser atribuído a outro, ou ao que
ele julga ser merecedor, o que o faz olhar esse outro com a exigência de
respeito e de reconhecimento. Nesse aspecto, Hobbes (1988) sugere a ideia de
glória, uma das paixões que, assim como a competição e a desconfiança, leva à
discórdia no estado de guerra.
Assim, na sociedade nascente, as qualidades e desigualdades
naturais dos homens, antes voltadas para a preservação da vida, tornam-se
pervertidas e colocadas em função do proveito próprio, do “amor próprio
interessado”. Na busca de reconhecimento, para o proveito próprio, foi preciso
demonstrar ou parecer ser o que não se era. Assim, “[...] ser e parecer
tornaram-se duas coisas totalmente diferentes, e dessa distinção provieram o
fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhes formam o
cortejo” (ROUSSEAU, 1999, p. 217). É assim que a desigualdade natural começa a
se revestir de qualitativos morais, agregando outros caracteres e tomando outras
dimensões não apenas relacionadas às necessidades de sobrevivência. Então,
novas qualidades se incorporam aos homens.
As novas qualidades agregadas aos homens surgem com o início da
propriedade que, para Rousseau (1999), é a causa da desigualdade entre os
homens. É quando ao homem-instinto se sobrepõe o homem-razão; quando então se
manifesta a ambição, o desejo do lucro, a luta pela conquista de maior poder.
Nesse caso, uma nova desigualdade entre os homens começa a se manifestar: a desigualdade
moral, uma vez que a natural já acompanhava a evolução do homem desde a sua
relação primordial com a natureza.
No entanto, há de se considerar que a desigualdade avançava num
processo de transformação, pois ocorria à medida que se transformavam as
relações entre os homens no próprio decurso da evolução social e das relações
de produção. Assim, nas províncias e dinastias feudais remanescentes do antigo
Império Franco do Ocidente (ELIAS, 1993), com novas formas de organização
social e novas relações, verifica-se que a desigualdade já adquiria contornos
mais severos. Mesmo com uma economia ainda pautada na troca direta, já se
verificava o domínio de alguns homens sobre outros, haja vista que
A
Casa que dominava politicamente o território era também a mais rica no mesmo,
detentora da mais extensa área de terra, e seu poder político diminuía caso o
seu poder militar, que tinha origem no volume de receita produzida pelo domínio
e número de servos e agregados, não excedesse o de todas as demais famílias de
guerreiros da área (ELIAS, 1993, p. 90).
Eis então a razão por que Rousseau
(1999) considera que é o início da propriedade que cria as condições para o
estado de guerra, que já não se caracterizava tanto pela conservação da vida,
nem da propriedade – vista como um meio –, mas pela busca do reconhecimento,
pelo desejo de glória e de honra e, consequentemente, pelo poder que dele
advinha. Logo, as “Casas do Rei” lutavam entre si não tanto pelo desejo de
ampliação das posses quanto pelo de subjugar o rival que lhe poderia igualar em
poder, mas, sobretudo, pelo acréscimo de poder político e econômico que lhes
seria conferido com a conquista. À vencedora cabia as posses da vencida, o que
lhe conferia aumento das posses de sua família, sua base econômica e militar.
Logo, a ampliação de seu poder. Assim, “[...] após muitas vitórias e derrotas,
alguns se tornavam mais fortes pela acumulação dos meios do poder [além dos
bens materiais, criados, amigos, entre outros], enquanto outros eram obrigados
a desistir da luta” (ELIAS, 1993, p. 93). Aos vencedores, o reconhecimento e,
consequentemente, mais poder, já que “[...] a reputação do poder é poder, pois
com ela se consegue a adesão daqueles que necessitam proteção” (HOBBES, 1988,
p. 53). Significa que o homem tem tanto mais poder quanto maior for a sua
capacidade de se fazer honrar positivamente por outro que, naturalmente, assume
uma posição bajulativa, de reivindicação, de confiança e, sobretudo, de
submissão (HOBBES, 1988).
Verifica-se, pelo exposto, que os
três clássicos encontram nas sociedades de Luís VI (ELIAS, 1993) o cenário do
estado de guerra por eles caracterizado. As evidências empíricas dessas
sociedades são bastante perceptíveis. Tal fato justifica a crítica de Rousseau
(1999) a Hobbes (1988) e a Locke (1998), antes mencionada, quanto à descrição
do homem civil em vez do natural. Os conflitos retratados por Elias (1993) nas
sociedades nascentes denunciam as dificuldades das organizações políticas da
época em se estabelecer como Estado único, duradouro e permanente. Revelam as
dificuldades dessas sociedades de conferir unidade às forças atuantes tanto no
Império Franco como no Romano-Germânico. Dessa forma,
Há
boas razões para supor que, dado o nível de divisão do trabalho e integração e
das técnicas militares, administrativas e de transporte da época, era
provavelmente insolúvel o problema de manter permanentemente sob controle as
tendências centrífugas numa área tão vasta (ELIAS, 1993, p. 91).
Ratifica-se, então, a evidência de
que a ordem social da época já não dava conta de atender às demandas, aos novos
antagonismos e adversidades daquele momento histórico. A sociedade estava em
colapso e, para não o agravar se tornava emergente um novo paradigma. Este, já
se gestava nas ideias burguesas, que se contrapunham à ordem vigente dos
estados absolutistas daquela época.
É nesse contexto que se percebe o quanto que as ideias de estado
de natureza e de guerra concebidas por Hobbes (1988) e Locke (1998) assumem
importância preponderante na justificação da necessidade de se estabelecer o
pacto social acerca do qual não cabe tratar neste ensaio, mas sua referência
contribui para completar essa compreensão, sobretudo, porque os dois clássicos
consideram que é para sair dos inconvenientes do estado de guerra, ou não
chegar a ele, que os homens desejam um poder superior com força coercitiva que
os submetam.
Assim, foi com o olhar voltado para as sociedades nascentes do
século XII que, tanto Hobbes (1988) quanto Locke (1998) descreveram aquela
realidade como um hipotético estado de natureza. A este remeteram os
fundamentos do Estado e, com a formação do pacto, a possibilidade de uma nova
estrutura política que permitisse a preservação da propriedade e a estabilidade
necessária à manutenção da sociedade, com o consequente fortalecimento das
relações entre os homens. Embora com esses ideais comuns, os dois clássicos
concebem modelos diferentes para o Estado político. Hobbes (1988) cria as bases
de legitimação do Estado absolutista, enquanto Locke (1998), na defesa da
propriedade, contribui com a legitimação de um Estado democrático, pautado no
ideal da sociedade burguesa, que tinha na propriedade uma de suas bases.
O TRABALHO COMO MEDIDA DA PROPRIEDADE
Tanto Hobbes (1988) como Locke (1998) e Rousseau (1999) remetem a
origem do Estado moderno à divisão do trabalho e à propriedade, decorrentes das
determinações de luta pela manutenção da existência humana e do fortalecimento
das relações entre os homens. Estas se fortaleciam mutuamente com o
desenvolvimento das comunidades nascentes. Enquanto para Hobbes (1988) o homem
só assegura o seu direito à propriedade no Estado político, para Locke (1998) e
Rousseau (1999) esse direito lhe era garantido ainda no estado de natureza – um
direito decorrente de uma relação direta entre o homem e as coisas que ele
conquistava com o seu trabalho à medida que transformava a natureza na luta
pela sobrevivência e conservação da família. A parte conquistada mediante o
trabalho deixava de ser comum a todos os homens, pois a ela tornava-se inerente
algo que propriamente pertencia àquele que a conquistava e que a tinha com
exclusividade: o trabalho proveniente do esforço de seu próprio corpo.
Vê-se
nos terrenos em comum, que assim ficam por pacto, que é a tomada de qualquer
parte do que é comum com a remoção para fora do estado em que a natureza o
deixou que dá início à propriedade, sem o que o comum nenhuma utilidade teria
(Locke, 1983, p. 46).
Para Rousseau (1999), porém, é na vida em família que surge a ideia
de propriedade, quando os homens começam a construir suas habitações; ou mais
precisamente, quando o “[...] primeiro que, tendo cercado um terreno,
atreveu-se a dizer: isto é meu, e
encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro
fundador da sociedade” (ROUSSEAU, 1999, p. 203. Grifos do autor). Considera,
portanto, que é impossível que se conceba algo fora da natureza em cuja
produção não se observe o trabalho do homem, não traga em si a sua força e
esforço próprios.
É o trabalho apenas que, dando ao
lavrador o direito sobre o produto da terra que lavrou, dá-lhe,
consequentemente, o direito sobre o solo, pelo menos até a colheita, e assim,
de ano em ano, o que viria a ser uma posse contínua se transforma facilmente em
propriedade (ROUSSEAU, 1999, p. 216).
No entanto, com o estabelecimento
das famílias em territórios particulares e as distinções entre elas se, por um
lado, os homens se fortaleciam no enfrentamento das adversidades da natureza,
por outro, ampliavam-se as suas necessidades e se estabelecia a dependência
entre eles, de modo que o trabalho, aos poucos, tornava-se necessário. Com o
trabalho e o direito de propriedade, a luta pela sobrevivência, num primeiro
momento, e pela conservação da família, num segundo, levou os homens a
desenvolver em graus diferentes as suas capacidades naturais à medida que se
fortaleciam as relações interpessoais.
Por conseguinte, a ação mais eficaz e a mais eficiente de alguns
homens na execução do trabalho, nas atividades básicas de sobrevivência,
tornaria as posses de alguns superiores às de outros, o que levaria uma parte dos
homens a ficar submetida às vontades da outra. Transformava-se, assim, a
desigualdade natural, que se revestia de novas características conforme o
desenvolvimento da estrutura social, que exigia relações sociais mais complexas,
mais desenvolvidas. Isto acarretava o aprofundamento dos conflitos, uma vez que
exigia cada vez mais dos homens as manifestações de suas qualidades internas.
Os homens passavam a se mostrar mais, a ganhar mais evidência. Com maior
visibilidade, a natureza egoísta individual de que se refere Hobbes (1988) despontava
e se tornava mais evidente.
É nesses termos que faz todo o sentido a crítica de Rousseau
(1999) quanto ao homem natural retratado pelos clássicos Locke e Hobbes, pois é
somente na relação com o outro, na relação de pertença e disputa com os seus
semelhantes que se evidenciam no homem as suas qualidades “boas” ou “más”. Entretanto,
nesse campo de semelhanças entre os homens, a crítica de Rousseau se revela
vazia de sentidos e significados, já que o “bom selvagem” por ele retratado não
se equipara ao homem selvagem hobbesiano, já que aquele é retratado numa
relação somente com a natureza e com os animais e não com os outros homens, como
o é em Hobbes, razão pela qual o “bom selvagem” rousseauniano não poderia evidenciar
qualidades “boas” ou “más”.
Não obstante, a despeito dessa observação, qualidades humanas
desiguais já se destacavam nas sociedades da Pré-Monarquia Francesa quando, nas
lutas de eliminação desencadeadas por um processo de seleção social, qualidades
pessoais de certos indivíduos (ELIAS, 1993) sobrepunham-se às de outros, evidenciando
desigualdades progressivamente revestidas de vieses econômicos e de um forte
caráter de dominação. Os homens que conquistavam mais riquezas, isto é, mais
terras e mais rebanhos, colocavam a seu serviço ou submetiam às suas vontades
os que obtinham menos posses por não terem conseguido avançar nas conquistas,
ou seja, por não terem executado com êxito as leis de natureza hobbesiana.
[...]
as primeiras batalhas eliminatórias, com o fiel da balança se movendo
inicialmente em favor de uns poucos e, finalmente, de um único dos
participantes. Uma Casa [...] acumulava tanta terra que as outras não podiam
mais rivalizar com ela em termos militares e econômicos (ELIAS, 1993, p. 108).
Infere-se, pois, que as sociedades
nascentes já traziam consigo o germe da desigualdade, colocando os homens nas
categorias de “fortes” e “fracos”, como sugere Hobbes (1988); ou ricos e
pobres, como prefere Rousseau (1999) ao se referir aos desiguais, por
considerar que as palavras “pobre” e “rico” expressariam melhor o sentido do
que representavam, uma vez que, antes das leis, um homem não tinha outro meio
de subjugar seus iguais senão atacando os seus bens.
Nas sociedades nascentes, a terra era o bem mais precioso e mais cobiçado,
pois dela é que se teria a produção e o rebanho, isto é, riqueza e poder. “Da
cultura das terras, seguiu-se necessariamente sua partilha, e da propriedade,
uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça” (ROUSSEAU, 1999, p.
215). Para Locke (1998), a partilha é
conforme a capacidade de trabalho que cada homem ou família tem de cultivar a
terra, sendo ofensa aos outros a posse sem o devido cultivo. Considera que
A
natureza fixou bem a medida da propriedade pela extensão do trabalho e da conveniência dos homens
[...]. Tal medida confinava a posse de cada homem a uma proporção
bastante moderada, tanta quanta ele pudesse apropriar para si sem causar
injúria a quem quer que fosse (LOCKE, 1998, p. 415. Grifos do autor).
Dessa forma, já que o trabalho
agregava valor às coisas e a terra, pela regra de propriedade era possível se
dispor de tanta terra quanto se pudesse cultivá-la. Rousseau (1999), no
entanto, não concorda com essa regra pela qual cada homem poderia ter tanto
quanto pudesse usar (LOCKE, 1998). Para ele, o direito natural de propriedade
no qual se baseava tal regra já trazia em si a desigualdade, uma vez que as
faculdades naturais dos homens não se desenvolviam por igual.
O desenvolvimento desigual das
faculdades naturais contribuía então para acentuar as diferenças de posses,
pois o mais forte certamente realizaria mais obras, assim como o mais esperto
tiraria melhor proveito da sua, e o mais engenhoso encontraria melhores meios
de abreviar o trabalho. Dessa forma, mesmo trabalhando igualmente, alguns
homens iriam ganhar mais enquanto outros apenas labutariam para viver
(ROUSSEAU, 1999).
Por conseguinte, a combinação de
qualidades naturalmente desiguais, aliada às necessidades particulares e a
circunstâncias outras próprias da vida coletiva, possibilitaria ao homem a
aquisição desigual de posses e, consequentemente, faria desdobrar
insensivelmente a desigualdade natural, tornando as sociedades nascentes cada
vez mais divididas entre ricos e pobres. Não sem razão, pois, os menos
afortunados
[...] foram obrigados a receber ou
a usurpar sua subsistência das mãos dos ricos; e daí começaram a nascer,
conforme os diversos temperamentos de uns e de outros, a dominação e a
servidão, ou a violência e as rapinas. Os ricos, por sua vez, [...] só pensaram
em subjugar e escravizar seus vizinhos (ROUSSEAU, 1999, p. 219).
Locke (1998, p. 428), no entanto, por atribuir ao trabalho a justa
medida da propriedade, considera que a posse desigual e desproporcional da
terra foi consentida pelos próprios homens, “[...] apenas atribuindo-se um
valor ao ouro e à prata e concordando-se tacitamente com o uso do
dinheiro”. É precisamente nessa ideia do
uso do dinheiro que Locke (1998) encontra um meio de melhor justificar a
injúria causada a outrem pelo excedente de produtos apropriados da natureza ou
pela terra não cultivada. Isto porque, para Locke (1983), aquele que se
apropriava de algo além da sua necessidade “ofendia a lei comum da natureza e
estava sujeito à punição; [pois] invadia a parte do vizinho, [e] porque não
tinha direito mais além do que o exigia o próprio uso”.
Lock (1998) considera que “[...] o exagero nos limites de sua justa propriedade não residia na extensão de
suas posses, mas no perecimento inútil de qualquer parte delas” (LOCKE, 1998, p.
428. Grifos do autor). Assim, o que poderia causar ofensa a outrem seriam as
sobras, o excedente, o não consumido, no caso de produtos extraídos da
natureza, como por exemplo, os frutos de árvores nativas, cujo único trabalho
do homem era o de colhê-los; ou a terra não cultivada.
No entanto, com o uso do dinheiro, o direito ao exagero nos
limites da propriedade passaria a ser assegurado, pois se teria como evitar o
seu desperdício ou perecimento. Aliás, com a instituição do dinheiro, teve-se o
estímulo necessário para o homem adquirir mais posses de terras, pois, com o
seu uso, o que excedesse à necessidade imediata poderia ser acumulado como
provisão para o futuro.
Onde não há nada que seja ao mesmo
tempo escasso e durável, e tão valioso que possa ser acumulado, os homens não
são capazes de aumentar suas posses de
terra, por mais ricas que estas sejam ou por maior liberdade que tenham
para tomá-las. Pergunto, pois, que valor daria alguém a dez mil, ou a cem mil
acres de terra excelente, já
cultivada e também bem abastecida de gado, em pleno interior da América, onde não tivesse esperanças de
comércio com outras partes do mundo que lhe trouxessem dinheiro pela venda dos produtos? (LOCKE, 1998, p. 427. Grifos do
autor).
Por essa concepção é possível perceber o quanto que o contexto
econômico e político das sociedades da Pré-Monarquia Francesa, entre os séculos
XI e XII, contribuíram para a legitimação do direito à propriedade, recorrendo
a um hipotético estado de natureza. As sociedades retratadas por Elias (1993)
mostram que os estados de natureza hobbesiano e lockeano se originavam numa
realidade já posta, concretizada, com a terra já concentrada nas mãos de
poucos, as sociedades divididas entre ricos e pobres e as desigualdades sociais
em franca expansão.
Assim, tanto Hobbes (1988) quanto Locke (1998) buscavam
fundamentos que legitimassem um Estado conforme os seus ideais – monarquia e
democracia, respectivamente –, já que os antagonismos e as adversidades da
época clamavam por uma nova ordem, um novo modelo político e econômico de
organização da sociedade. Em Locke (1998), a preocupação com a preservação da
propriedade é uma questão central na instituição do Estado moderno com o pacto social.
Ao retratar o estado de natureza a questão da desigualdade está
presente nos três clássicos. Em Hobbes (1988), por sua concepção de estado de
guerra, o homem só teria direito à propriedade no estado político, no qual o
soberano poderia distribuir as terras por igual, evitando a desigualdade já
estabelecida no estado de natureza. Locke (1998), no entanto, ao tornar o
trabalho a medida da propriedade, revela as condições para o estabelecimento
das desigualdades, já que os homens não se desenvolvem por igual. Por outro
lado, é Rousseau (1999) quem melhor descreve o desenvolvimento das
desigualdades a partir da propriedade que, baseada na divisão do trabalho,
termina por produzir ricos e pobres. Pela concepção dos três, o Estado já nasce
repleto de desigualdades, uma vez que na sua própria estrutura já estão as
condições para os dois extremos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O argumento central deste ensaio
utilizou-se das ideias de estado de natureza dos clássicos jusnaturalistas
Locke, Hobbes e Rousseau para evidenciar os fatores que desencadearam a
desigualdade entre os homens no momento histórico que antecedeu a formação do Estado moderno. Utilizou-se também das ideias de
Norbert Elias para evidenciar que o estado de natureza de que tratam os
jusnaturalistas tinha como cenários reais as guerras entre famílias das
pré-monarquias francesas do século XII com o fim de ampliação de domínios e de
poder.
Baseando-se nesses teóricos, os argumentos utilizados neste ensaio
apresentaram respostas a seguinte questão: quais fatores contribuíram com a
origem da desigualdade entre os homens quando as relações entre estes se
fortaleciam nos mesmos contextos de desenvolvimento científico, tecnológico e
econômico? As respostas sugerem que a desigualdade se estabeleceu à medida que se
fortaleceram as relações entre os homens; que se consolidaram os agrupamentos
humanos e as organizações políticas em sua origem. Trazem a compreensão de que,
na origem do processo de evolução da humanidade, os principais fatores que
contribuíram significativamente com a instalação da desigualdade no estado de
natureza e seus novos vieses nas sociedades da Pré-Monarquia Francesa podem ser
considerados a partir das seguintes ideias:
São essas as ideias que levam os homens ao estado de guerra em obediência ao preceito do direito natural, pelo qual todo homem deve executar a lei de natureza para a preservação da vida. A ideia de igualdade serviu como ponto de partida para a de liberdade “alçar voo”, a ponto de transformar o igual em desigual. A consequência disso, e talvez o seu extremo, está no desenvolvimento da ambição e no desejo de poder, o que ocasiona a dominação de alguns homens sobre outros e assegura novas formas de desigualdades. Da desigualdade natural voltada para a preservação da vida, passa-se à desigualdade moral ancorada em vícios e exaltação de qualidades pessoais para proveito próprio na busca de reconhecimento.
O direito
natural do mais forte:
Essa ideia de que um homem poderia subjugar o outro e se apropriar de seus bens criou a base de uma estrutura desigual na sociedade na qual os considerados mais “fracos” ficaram sem condições de competir em igualdade de condições, sujeitando-se à dominação dos que concentravam em si os meios de produção.
O trabalho
como justa medida da propriedade:
Como os homens se desenvolviam de modo desigual nas suas
características físicas e intelectuais, os bens adquiridos com o trabalho
pessoal ou familiar possibilitavam posses igualmente desiguais. Logo, ao se
definir o contrato social baseado na propriedade fundada nesse parâmetro,
colocava-se na estrutura da sociedade e do governo que se buscava a possibilidade
de aprofundamento da desigualdade entre os homens.
Observa-se, pois, que o trabalho como justa medida da propriedade
é o meio desigual pelo qual se construíram as bases da economia nas sociedades nascentes
da Pré-Monarquia Francesa. Por conseguinte, Locke, ao caracterizar o estado de
natureza, buscava os fundamentos de um Estado político que legitimasse aquela
ordem econômica, especialmente no tocante à preservação da propriedade privada,
pois era em torno desta que se concentravam os grandes conflitos da época. Portanto,
o cenário econômico estava posto; faltavam, porém, as dimensões políticas
logicamente planejadas e estruturadas; isto é, faltava uma racionalidade que
possibilitasse a unidade entre as várias forças conflitantes, que não
conseguiam se estabelecer enquanto Estado unitário.
NEQUALITY BETWEEN MEN IN THE STATE OF NATURE:
AN ANALYSIS BETWEEN THE JUSNATURALIST'S STATE OF WAR AND THE
FRENCH PRE-MONARCH SOCIETIES
Abstract: This essay reflects on the inequality
between men and the factors that contributed to their origin and reproduction
when social relations were consolidated in the historical moment that preceded
the institution of the Modern State. It is based on the thinking of Thomas
Hobbes (1988), John Locke (1998) and Jean-Jacques Rousseau (1999) regarding the
state of nature and the state of war; and in the thinking of Norbert Elias
(1993) regarding the formation of the Monarchical State. When analyzing the
ideas of these theorists, it was possible to observe that the economic, social
and political reality of the societies of the French Pre-Monarchy of the 12th
century portrayed by Elias brings the empirical context that these classics
used to explain or justify the foundations of the State. These foundations are
anchored in the ideals of freedom, equality and property. This is an eminently
bibliographic comparative study. His argument is built on an association and
confrontation of ideas between one theorist and another. At the crossroads of
ideas, some aspects related to the relationship of equality, freedom, property
and inequality between men are also analyzed. From the analysis of this
relationship emerges the perception that the ideas of equality and freedom contributed
greatly to the emergence of inequality between men. Also the perception that
the idea of work as a measure of property ended up contributing to the
widening or deepening of inequality.
Keywords: Locke. Rousseau. Hobbes. Norbert Elias. Jusnaturalists.
REFERÊNCIAS
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do
Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um
estado eclesiástico e civil. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os
Pensadores).
LOCKE, John. O Segundo Tratado
sobre o Governo: um ensaio referente à verdadeira origem, extensão e objetivo
do Governo Civil. In: ______. Dois
Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 379-601.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[1] Embora a
desigualdade social seja bastante retratada em textos bíblicos, e a História
registre sua existência em diferentes épocas, consideram-se neste artigo somente
as ideias desses clássicos por considerá-las formas de pensar que contribuíram
com a legitimação do estado absolutista e do moderno.
**Mestre em
Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (Teresina, 2009).
Licenciada em Filosofia pela mesma Universidade (Teresina, 1998). E-mail:
soniaferreira.smf@gmail.com
*Trabalho
apresentado à disciplina Teoria Política do Curso de Mestrado em Políticas
Públicas da Universidade Federal do Piauí sob a orientação da professora Drª Guiomar
Passos visando à avaliação de desempenho na disciplina. Teresina, 2007.
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