sábado, 24 de abril de 2021

O ideal de igualdade em governos democráticos: condição de possibilidade do status quo? Caminho: Neura Científica

Imagem com o gato Mardoqueu apresentando o conteúdo O Ideal de Igualdade em governos democráticos.
Este ensaio se refere às razões pelas quais os governos democráticos enfatizam mais o ideal de igualdade em vez dos de liberdade e sugere que é porque ele favorece a uniformização de comportamentos com vistas à manutenção do status quo. Mais um conteúdo do Caminho Neura Científica.

 

O IDEAL DE IGUALDADE EM GOVERNOS DEMOCRÁTICOS:

CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DO STATUS QUO?*

 

Sônia Maria Ferreira Lima**

 

RESUMO:  Este ensaio apresenta algumas respostas para as seguintes questões: quais as razões que levariam governos democráticos a enfatizarem tanto os ideais de igualdade em vez dos de liberdade, quando se sabe que, empiricamente, os homens são absolutamente desiguais? Quais interesses subjacentes na propagação desses ideais? Que vantagens teriam os governos quando assim procedem? Na busca dessas respostas foram fundamentais as concepções de Aléxis de Tocqueville (2000) sobre igualdade e individualismo; e as de Adam Smith (1999) sobre os sentimentos morais, precisamente em relação às condutas louváveis e às reprováveis. A primeira seção focaliza a igualdade e as consequências desse ideal. Refere-se à formação da conduta individual e revela como a sociedade exerce pressão sobre essa formação. A segunda seção se reporta ao diverso e ao desigual, e às condutas que os ideais de igualdade pressupõem, mas que não se deixam evidenciar. Como ensaio, trata-se de um trabalho bibliográfico com argumentos próprios. A argumentação dá-se a partir de ideias centrais baseadas em Smith e Tocqueville às quais se intercalam posições de autores como Joseph Schumpeter (1983), John Rawls (2003) e Mancur Olson (1999). Prossegue numa construção de ideias que se contrapõem ou que se acordam, mas sempre na busca de respostas que possibilitem uma compreensão dos temas propostos. As respostas às questões propostas sugerem que o interesse dos governos democráticos ao enfatizarem os ideais de igualdade em vez dos de liberdade é favorecer a manutenção da ordem vigente a partir da uniformização dos comportamentos com vistas à subordinação. Para isso, torna-se imprescindível podar os ideais de liberdade porque supostamente seriam eles a concorrerem para o questionamento da ordem.

Palavras-Chave: Adam Smith. Tocqueville. Schumpeter. Rawls. Olson. Democracia. Igualdade. Liberdade. Conduta Individual. Coerção. Status Quo.

 

 

INTRODUÇÃO

 

As teorias jusnaturalistas dos séculos XVI ao XVIII, que tratam sobre os fundamentos do Estado moderno, introduzem os conceitos fundamentais das discussões político-ideológicas da época que se estenderiam aos séculos seguintes: os conceitos de igualdade, liberdade e propriedade. Os dois primeiros instituíram-se como os principais pilares da democracia, âmbito no qual se fortalecem esses ideais.

Porém, a despeito da liberdade como um dos pilares da democracia, o destaque deste ensaio é sobre o primeiro conceito – o de igualdade –, especialmente porque, em detrimento da liberdade, foi a igualdade que carreou em seu curso todos os sentimentos e todas as ideias daquelas épocas (TOCQUEVILLE, 2000), tornando-se o pensamento particular e dominante que singulariza aqueles tempos.

Em suas origens, quando a liberdade estava apenas nas ideias e nos gostos, a igualdade “[...] já havia penetrado nos hábitos, tinha se apossado dos costumes e dado um toque particular às menores ações da vida” (TOCQUEVILLE, 2000, p.117). A liberdade, ao contrário, por ter-se manifestado aos homens em diferentes tempos e formas, inclusive fora das democracias, não poderia, por isso, constituir o caráter distintivo dos tempos democráticos. A igualdade, sim. Inclusive, como ideia dominante que se instituía desde àquelas épocas, os homens e os poderes que quisessem lutar contra ela – a força irresistível – seriam derrubados e destruídos por ela, dada à força e à extensão do seu conceito, que se ampliava em torno dos seus ideais.

Esse entendimento suscita indagações sobre as razões pelas quais os ideais de igualdade se tornaram tão caros à democracia clássica, a ponto de os governos não subsistirem sem eles. Questionam-se, pois, as razões que levariam os governos democráticos, ainda em nossos tempos, a enfatizarem tanto a igualdade, quando se sabe que, empiricamente, os homens são absolutamente desiguais. Quais interesses subjazem nesses governos ao empenhar essa “bandeira”? Que vantagens teriam? São alguns questionamentos que se impõem na busca de compreensão do fato de os ideais de igualdade assumirem importância preponderante na democracia em detrimento dos ideais de liberdade.

Na tentativa de respostas para essas questões, parte-se do pressuposto de que os governos democráticos teriam interesse em uniformizar comportamentos com vistas à preservação da ordem social. Tal pressuposto fundamenta-se na teoria dos sentimentos morais de Smith (1999), para quem os homens são levados a examinar sua própria conduta como imaginam que os outros a examinariam; se, nessa inversão de lugar e de olhar, conseguem compartilhar as paixões e os motivos que a determinam, a conduta é aprovada com a sua aprovação pelos outros; mas, se ao contrário, compartilham a sua desaprovação, a conduta é condenada. São esses indicativos bastante reveladores de que a conduta individual é determinada pelo olhar da sociedade.

Ancorando-se nesses pressupostos, este ensaio propõe apresentar algumas razões que explicariam o interesse de governos democráticos em propagar os ideais de igualdade, assim como alguns fatores que se poderiam considerar como possíveis ganhos dos governos ao evidenciar esses ideais.

Na apresentação dessas razões, a argumentação segue dividida em duas seções. A primeira, refere-se ao ideal de igualdade e suas consequências, e à coerção social como mecanismo de pressão de que se utiliza a sociedade na formação da conduta individual. A segunda seção suscita uma reflexão sobre condutas que evidenciam o diverso e o desigual, porém, escamoteadas pela ênfase na ideia de igualdade.

Trata-se de um trabalho bibliográfico fundamentado nas ideias de Smith (1999) e Tocqueville (2000) e complementado com ideias de Rawls (2003), Olson (1999) e Schumpeter (1983).  As argumentações intercalam as posições dos referidos teóricos observando aspectos relevantes para as respostas à questão acerca dos ideais de igualdade assumirem importância preponderante nas democracias. Os argumentos se articulam na construção de um pensamento que corrobora com o pressuposto pelo qual a uniformização de comportamentos em prol da preservação da ordem social seria uma das principais razões de os governos democráticos evidenciarem sobretudo os ideais de igualdade em vez dos de liberdade.

 

IGUALDADE E FORMAÇÃO DA CONDUTA INDIVIDUAL

A democracia pressupõe o estado de direito no qual os indivíduos são tratados como iguais perante a lei. Essa condição de igualdade naturalizou-se enquanto ideal nas sociedades modernas. A democracia, então, fez desse ideal seu estandarte. São vários os autores que teorizaram sobre os ideais democráticos. Entre estes, Rawls (2003, p. 55) propõe sua teoria da justiça como equidade para uma sociedade democrática “[...] que não só professa, mas pretende levar a sério a ideia de que cidadãos são livres e iguais [...]”. Schumpeter (1983, p. 332), no entanto, considera que o próprio significado de igualdade é duvidoso “[...] e dificilmente há qualquer garantia em exaltá-lo como postulado, na medida em que nos movemos na esfera da análise empírica”. Tocqueville, (2000, p. 115) por sua vez, vê na igualdade uma possibilidade de males que “[...] se insinuam gradativamente no corpo social; só são vistos de longe em longe e, quando se tornam mais violentos, o hábito já fez que não sejam mais sentidos.”

Em detrimento dessas teorizações, o que se analisam neste ensaio são as razões pelas quais os governos democráticos fazem do ideal de igualdade um estandarte. Supõe-se que a construção de preceitos morais necessários à coerção social seria uma dessas razões, pois, assim como os legais, contribuem sobremaneira para a formatação da conduta individual e, como consequência, da preservação da ordem societária.

Nesse aspecto, a concepção de individualismo de Tocqueville (2000) e a teoria dos sentimentos morais de Smith (1999), precisamente no que se refere à sua concepção de condutas valorativas e condutas reprovativas, trazem uma contribuição bastante significativa na argumentação. Senão, vejamos. O individualismo de que trata Tocqueville (2000) leva a um distanciamento entre os homens proporcionado pela própria ideia de igualdade. O individualismo assim concebido se conforma às ideias de Smith (1999) quanto ao seu conceito de conduta valorativa, precisamente na sua assertiva de que os homens, ao se reconhecerem no outro, no seu semelhante, adotam igualmente a mesma postura de isolamento, pressupondo que a conduta que observa no seu igual é digna de aplauso e, portanto, passível de ser tomada como sua própria conduta.

Empenhamo-nos em examinar nossa própria conduta como imaginamos que outro espectador imparcial e leal a examinaria. Se, colocando-nos em seu lugar, conseguimos compartilhar inteiramente as paixões e motivos que a determinaram, nós a aprovamos por simpatia com a aprovação desse suposto eqüitativo juiz. Se, ao contrário, compartilhamos sua desaprovação, condenamos essa conduta (SMITH, 1999, p. 140).

Essa preocupação com o “olhar do outro” expressa o quanto a sociedade exerce pressão sobre a conduta individual, tornando-a suscetível à aprovação ou vulnerável à censura, o que se realiza conforme os valores vigentes. O individualismo configura-se, então, como um valor aprovado pela sociedade; logo, um valor compartilhado por todos; um valor legítimo, assim como a própria ideia de igualdade que o proporciona.

Depreende-se desse fato que os governos de Estados democráticos, ao tentarem legitimar uma ideia, partem do princípio de que os homens naturalmente têm necessidade de aprovação de sua conduta a partir do olhar de seus semelhantes. Logo, percebem ser próprio do homem a preocupação em saber em que medida seu comportamento merece ou não aplauso ou censura.  Com essa compreensão, veem na preocupação com os outros a possibilidade de os homens examinarem suas próprias paixões e condutas. Assim, considerar o que estas pareceriam aos outros pensando o que a ele próprio pareceria caso estivesse em seu lugar.

Assim como Smith (1999, p. 139), consideram esses governos que “o princípio pelo qual naturalmente aprovamos ou desaprovamos nossa própria conduta parece em tudo igual ao princípio pelo qual formamos juízos semelhantes a respeito da conduta de outras pessoas”. Assim, da mesma forma que os homens desejam naturalmente ser amados, temem ser odiados. Mas não apenas isso, pois também desejam tanto serem amáveis como temem igualmente serem odiosos. Se por um lado então os homens desejam ser “[...] objeto natural e apropriado de amor”, por outro temem “[...] ser objeto natural e apropriado de ódio” (SMITH, 1999, p. 143).

Considerando-se a veracidade dessas proposições, é possível se inferir que os governos democráticos procuram enfatizar os ideais de igualdade por perceberem que com eles podem fomentar condutas que afirmem os valores que pretendem legitimar. Daí por que Tocqueville se reporta aos males, efeitos e consequências que a extrema paixão pela igualdade proporciona aos homens que vivem sob os governos democráticos. Considera que o individualismo surge como primeira consequência desse ideal, além do amor pela própria igualdade, que a torna mais desejada do que a liberdade e que os homens a têm como uma conquista “[...] e se prendem a ela como a um bem precioso que querem lhes roubar”. (TOCQUEVILLE, 2000, p. 116). Individualismo esse que, segundo ele, tem sua origem na própria democracia e se instala entre os homens à medida que se igualam as condições de existência.

É nesse sentido que a ideia de igualdade exerce um papel fundamental nos governos democráticos, pois é a partir dela que se legitimam condutas e valores voltados a interesses que fortalecem a manutenção da ordem social em detrimento de sua transformação. Com vistas a uma melhor compreensão desse processo, as concepções de condutas louváveis e condutas reprováveis de Smith (1999) contribuem para as análises que se empreendem a partir de agora, de modo que se percebam mecanismos pelos quais os ideais de igualdade propagados por governos democráticos conseguem formatar condutas individuais. Através destas, esses governos tendem a reforçar valores que reafirmam o status quo e, ao mesmo tempo, a neutralizar ações que possam levar a sua transformação.

Podemos compreender então que a ideia de igualdade é disseminada entre os indivíduos conforme o comportamento que se deseja obter deles. Nesse caso, aos governos é salutar o comportamento comedido, de paixões controladas seja pelo próprio indivíduo ou pelas normas instituídas. No caso de paixões autocontroladas, os governos são levados a reforçar positivamente os indivíduos, levando-os a ações que se desejam legitimar ou que já se tenham naturalizado como valores vigentes numa determinada ordem. É nesse aspecto que o “olhar do outro” assume importância central como mecanismo de coerção, quando a conduta individual é influenciada ou determinada pela conduta do semelhante, ou seja, pela própria sociedade.

Ansiamos por saber em que medida merecemos sua censura ou aplauso, e se perante elas necessariamente mostramo-nos tão agradáveis ou desagradáveis como elas perante nós. Começamos, pois, a examinar nossas próprias paixões e conduta, e considerar o que devem parecer aos outros, pensando o que a nós nos pareceriam se estivéssemos em seu lugar. Supomo-nos espectadores de nosso próprio comportamento, e procuramos imaginar o efeito que, sob essa luz, produziria sobre nós (SMITH, 1999, p. 141).

Smith (1999) expressa a necessidade de o indivíduo se afastar ou se distanciar de si mesmo e se colocar no lugar do outro que o olha, de modo que ao se enxergar, possa identificar suas predisposições espirituais. Revela assim que é preciso a inversão do olhar para que se imagine olhado ou visto do ponto de vista do outro. Com essa inversão, o outro que olha se torna o próprio espelho do que é olhado, levando este a se interpelar e a se questionar a partir dele.

No entanto, com essa possibilidade de se vê através do outro, os indivíduos adquirem também a capacidade de “filtrar” as informações sobre si mesmo, tomando apenas o que lhes é significativo e “bom”. E neste caso recaem sempre no que lhe afirmam os valores da ordem vigente. Acontece, porém, que ao se enxergar no seu igual, pode até não ser tão difícil reconhecer as qualidades externas, aquelas relativas ao corpo; mas não tão fácil reconhecer e aceitar as internas, as qualidades relativas ao espírito. Quanto a estas, uma vez reconhecidas, a tendência é tomar para si somente as paixões passíveis de serem valoradas e aprovadas socialmente; e negar ou escamotear aquelas que são vistas como indesejáveis ou reprováveis, porquanto recebem o repúdio da coletividade.

Logo, quando o indivíduo se conduz conforme os valores legitimados na sociedade, tem a aceitação dos seus semelhantes; por conseguinte, a sua própria satisfação. Do contrário, obtém a censura. É assim que se estabelecem os preceitos morais necessários à coerção social, à medida que os indivíduos incorporam ao seu universo cognitivo as condutas suscetíveis de louvor e rejeitam as passíveis de censura.

Para melhor compreensão do que foi exposto, acompanhemos a seguinte ilustração: ao observarmos a conduta das pessoas em relação a ações consideradas “positivas”, como por exemplo o assédio das fãs a um atleta vencedor de competições; ou, por outro lado, ao observarmos a conduta das mesmas pessoas em relação a ações consideradas “negativas” ou demasiado depreciativas como a prática de um crime, por exemplo, podemos nos deparar com duas formas distintas de posicionamento das mesmas pessoas em relação à igualdade.

No primeiro caso, pode não haver nenhuma resistência das pessoas em se espelhar no outro, no atleta vencedor; pelo contrário, a identificação pode ser até imediata, vez que a ação por ele praticada é louvável; por isso, desejável para os que compartilham esse valor. Podemos verificar então que, quando a ação é louvável, a identificação é imediata, como se o desejo fosse imanente àquela ação; por isso, não há nenhuma resistência em assumir a condição de igualdade em relação ao atleta vencedor. A reflexão diante do “espelho” diz: a conduta dele é louvável e como sou igual a ele também posso tê-la. Assim, a ideia de igualdade serve para reforçar a conduta e disseminá-la na sociedade, seja uma conduta louvável e por isso merecedora de reprodução; ou uma conduta reprovável e por isso merecedora de repulsão ou negação.

Ocorre, porém, que o mesmo não acontece quando se verificam ações consideradas “negativas”, como no segundo caso, condutas de natureza depreciativa ou desprezível. Pelo contrário, estas tendem a ser rejeitadas, pela seguinte razão. Assim como o amor e a admiração que os indivíduos concebem naturalmente por alguns semelhantes, da mesma forma o ódio e o desprezo levam os indivíduos a temerem a simples ideia de se parecer, ainda que nos mínimos aspectos, com aqueles que praticam ações passíveis de ódio e desprezo (SMITH, 1999). Se a conduta se associa ao amor e à admiração, os indivíduos são inclinados ao desejo de se tornarem objetos desses sentimentos; se associada ao ódio e ao desprezo, o desejo é de afastamento ou repulsão.  Constata-se essa situação pelo fato de que

Quando criou o homem para a sociedade, a natureza o dotou de um desejo original de agradar, e de uma aversão primária a ofender seus irmãos. Ensinou-o a sentir prazer com a opinião favorável destes, e a sofrer com sua opinião desfavorável. Tornou a aprovação dos semelhantes em si mesma muito lisonjeira e agradável a ele, e sua desaprovação muito mortificante e ofensiva (SMITH, 1999, p. 146).

É por isso que em se tratando do segundo caso, ao contrário do primeiro, embora reconhecendo no autor do crime um igual, não há identificação das pessoas em relação a ele, mas a repulsa e o desejo de afirmar a diferença. Neste caso, se por um lado “tememos a ideia de fazer algo que nos possa tornar objetos justos e adequados de ódio e desprezo de nossos semelhantes [...]” (SMITH, 1999, p. 147), por outro, reforçamos aquela conduta “negativa” e reprovativa na sociedade mais ampla. Podemos inferir então desse fato que em relação às paixões “negativas” ou reprovativas a conduta de quem as realiza é reprovada não apenas por tê-las praticado em prejuízo de outrem, mas também porque denuncia publicamente aquela característica ao conjunto dos homens, uma característica que devido ao seu caráter “negativo” não se deveria ter revelado. Ao tornar pública uma conduta “negativa” é como se o indivíduo estivesse rompendo o pacto, tacitamente firmado, pelo qual só o louvável merece ser dito ou mostrado.

Os governos democráticos, portanto, ao levantarem a “bandeira” da igualdade, reforçam entre os indivíduos condutas que evidenciam valores já arraigados ou que desejam legitimá-los. Assim, contribuem para a construção ou preservação de mecanismos de coerção que modelam o comportamento dos indivíduos, favorecendo a manutenção da ordem social independentemente de sua regulamentação. Entretanto, não significa que poderiam prescindir dos mecanismos legais, mas tão somente que estes seriam menos necessários quanto mais as condutas individuais fossem devidamente formatadas pela coerção social.

Nesse processo de legitimação de comportamentos, a experiência e a imaginação contribuem significativamente. A experiência mostra as medidas de conduta a serem respeitadas ou rejeitadas, levando os homens a refletirem sobre a conveniência de seu próprio comportamento quando com prazer ou vergonha relembram cada parte desse comportamento (SMITH, 1999). Pela experiência, os homens naturalizam as condutas louváveis e as reprováveis, que passam a ser identificadas no conjunto da sociedade.

Por conseguinte, sabendo que os sentimentos suscitados pelas condutas são efeitos naturais e comuns, os homens associam esses efeitos em sua imaginação e adquirem o hábito de concebê-los como algo que se deveria seguir natural e apropriadamente através da imaginação (SMITH, 1999). É assim que esta possibilita o exame da própria conduta ao supor o modo como o “olhar do outro” a examinaria.

Porquanto o ideal de igualdade esteja baseado em princípios pautados na aprovação ou reprovação de uma ação, os homens são naturalmente levados a adotarem condutas que reafirmem o desejo de agradar. Por conseguinte, uma vez que se tenha a conduta individual pautada em tais pressupostos, a consequência imediata que se poderia verificar seria com relação aos níveis de integração social. Níveis baixos poderiam supor que os ideais de igualdade ou não estão suficientemente naturalizados nas práticas diárias ou os “modelos” de conduta louváveis são diminutos em relação aos reprováveis.

Em quaisquer dos casos, a fragmentação ou corrosão das relações sociais seria uma possibilidade iminente, comprometendo, assim, a manutenção da ordem societária. Para impedir tal situação, caberia então aos governantes a função de reforçar os ideais de igualdade e/ou de ampliar os mecanismos legais. Neste segundo caso, porém, a medida serviria antes para reafirmar a condição de fragilidade das relações sociais mais do que para afirmar o seu fortalecimento.

 

O DIVERSO E O DESIGUAL NA IGUALDADE

A seção precedente sugere que os ideais de igualdade tendem a moldar condutas individuais reafirmando valores vigentes na sociedade. Se por um lado esses ideais reforçam as condutas aprovativas, por outro evidenciam também as repulsivas. Sugere também que a ênfase dos governos democráticos nesses ideais cumpre a função de reforçar os mecanismos de coerção social, os quais favorecem a manutenção do status quo.

Considerando, porém, que enquanto se afirma o igual também se evidencia o desigual e o diferente, esta seção analisa circunstâncias que revelam situações não tão evidentes e que tendem a passar despercebidas quando se propagam ideais de igualdade.

O próprio Tocqueville (2000, p. 365) chama atenção para o fato de todo governo central gostar da uniformidade por lhe poupar “[...] o exame de uma infinidade de detalhes de que teria de se ocupar, se tivesse de estabelecer a regra para os homens, em vez de colocar todos os homens indistintamente sob a mesma regra.” Esta afirmação deixa a compreensão de que é salutar aos governos uniformizar comportamentos devido a sua própria limitação em cuidar da diversidade. Podemos compreender, então, que os ideais de igualdade terminam por cumprir o papel de escamotear as diferentes necessidades e interesses.

Por outro lado, também se tem a compreensão de que esses ideais são da mesma natureza dos ideais de bem comum, de vontade geral, de coletividade. No entanto, “[...] mesmo que um bem comum suficientemente definido [...] se mostrasse aceitável para todos, isso não implicaria respostas igualmente definidas para as questões isoladas” (SCHUMPETER, 1983, p. 315), uma vez que

[...] não existe algo que seja um bem comum unicamente determinado, sobre o qual todas as pessoas concorrem ou sejam levadas a concordar através de argumentos racionais. Isso se deve, basicamente, não ao fato de algumas pessoas poderem desejar coisas diferentes do bem comum, mas ao fato muito mais fundamental de que, para diferentes indivíduos e grupos, o bem comum está fadado a significar diferentes coisas (SCHUMPETER, 1983, p. 314).

Exatamente pela impossibilidade dos governos de dar respostas diferentes a diferentes indivíduos é que os ideais de igualdade cumprem a função uniformizante como meio de neutralizar as diferenças. Assim, teriam menos dispêndio em relação ao trato particular a diferentes indivíduos na sua heterogeneidade. Tal assertiva se torna mais elucidativa em se observando o seguinte exemplo: uma política pública unitária e indiferenciada que vise a todos os indivíduos indistintamente levaria os indivíduos que dela não necessitam a se excluírem voluntariamente, ficando a descoberto outra possível necessidade na mesma área. Mas isso não seria visto de imediato, devido à visão escamoteante do “igual para todos”. Um exemplo seria a política do Sistema Único de Saúde (SUS) que, embora universal, ainda assim não atende a todos os setores da população. Outro exemplo refere-se à coleta compulsória de tributos. Nesse caso, é possível observar que

Os benefícios ou serviços mais elementares proporcionados por um governo, como defesa militar, proteção policial e o sistema de lei e ordem em geral, são benefícios ou serviços que alcançam a todos ou praticamente a todos na nação.  Seria obviamente inviável, caso fosse possível, negar a proteção das forças armadas, da polícia e dos tribunais àqueles que não pagassem voluntariamente sua parte dos custos governamentais com esses serviços, e os impostos são, portanto, necessários (OLSON, 1999, p. 26).

Ocorre, porém, que mesmo que esses benefícios não sejam efetivados também não o são requisitados prontamente pelos grupos de beneficiários; exceto em situações específicas e esporádicas em que determinados grupos os resolvam requisitar. Além disso, o recolhimento de impostos já parte da ideia de igualdade; da ideia de que uma vez que todos podem igualmente se beneficiar desse direito, em contrapartida teriam igualmente as mesmas obrigações. Propaga-se então a ideia de que todos contam igual; que todos estão sob a mesma medida; por isso, dispõem dos mesmos direitos, ainda que estes lhes imponham também as mesmas obrigações.

Entretanto, é exatamente pela impossibilidade da efetivação de contribuições voluntárias, que se fazem necessários pagamentos compulsórios como os impostos, já que

[...] apesar da força do patriotismo, do apelo da ideologia nacional, dos laços de uma cultura comum e da indispensabilidade da lei e da ordem, nenhum Estado importante na história moderna foi capaz de se sustentar através de cotas ou contribuições voluntárias (OLSON, 1999, p. 25).

Verifica-se, assim, que os governos dispõem de variados apelos baseados nos ideais de igualdade. Apelos que levam os indivíduos a se subordinarem às suas normas. Se não se subordinam voluntariamente pelos apelos morais ou ideológicos, o fazem pela força, pelo pagamento compulsório de impostos. Mas mesmo neste caso também está presente a ideia de igualdade, quando na definição das alíquotas não se consideram os diferentes segmentos da sociedade com suas condições socioeconômicas diferenciadas. Iguala-se a todos e a todas numa alíquota única e nessa alíquota se instala a injustiça.

Observemos essa situação tanto no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) quanto nas tarifas de transportes coletivos. Nesses casos, setores populares com baixos níveis de renda terminam por contribuir mais do que setores com rendas mais elevadas. Ainda que se relativizem cada caso em termos percentuais em relação aos níveis de renda.

Tanto o imposto quanto as tarifas atendem a setores indistintos da população nas mais variadas modalidades de vida. Taxados com alíquotas iguais, levam a todos e a todas a pagar o mesmo valor ou um valor equivalente à sua renda. Mas um valor X para quem dispõe de muito pode ser inalcançável para quem nada dispõe ou dispõe de pouco. Tem-se então a injustiça instalada na alíquota única.

No entanto, mesmo evidenciando a injustiça, esta tende a não ser questionada pelos setores das rendas baixas, ainda que se saibam prejudicados. É assim que faz todo o sentido a advertência de Tocqueville (2000, p. 115) ao afirmar que

os males que a extrema igualdade pode produzir só se manifestam pouco a pouco; eles se insinuam gradativamente no corpo social; só são vistos de longe em longe e, quando se tornam mais violentos, o hábito já fez que não sejam mais sentidos.

Com o exemplo, é possível perceber que, em se tratando de políticas generalizantes ou universais, a ideia de igualdade termina por excluir determinados setores da população. Todos recolhem o imposto, mas considerando que o governo não investe o suficiente nessas políticas de modo a legitimá-la em toda a sua abrangência, aqueles que não se sentem contemplados pelos serviços disponibilizados são levados a se excluírem “voluntariamente” do grupo beneficiário, e procurar (ou não) alternativas que atendam às suas necessidades.

De outra forma, Olson (1999) chama atenção para o fato de um benefício coletivo não ter o caráter generalizante, pois

Um benefício coletivo dirige-se a um determinado grupo de pessoas, outro benefício coletivo dirige-se a outro grupo; um pode favorecer o mundo inteiro, outro só a duas pessoas. Além do mais, alguns benefícios são benefícios coletivos para os membros de um determinado grupo e ao mesmo tempo benefícios privados para os membros de outro grupo, porque alguns indivíduos podem ser impedidos de desfrutar daquele benefício e outros não podem. (OLSON, 1999, p. 26. Rodapé).

Com relação aos excluídos de uma política, considere-se, como exemplo, o caso da universidade pública, que é um benefício coletivo universal, mas termina por favorecer a grupos determinados em detrimento de outros de igual direito. Supondo-se, pois, que um indivíduo das classes menos favorecidas, uma vez aprovado em vestibular, sinta-se impedido de frequentar a universidade devido às suas limitações financeiras, é uma evidência de que suas necessidades são diferenciadas, necessitando, portanto, de uma política que o atenda em suas necessidades específicas. Percebe-se, então, que, embora os governos disponibilizem uma política ampla com fins universais, nem todos conseguem se beneficiar dela.

Conclui-se, então, que a ideia de igualdade, mesmo evidenciando as diferenças, possibilita ao governo não elaborar políticas diferenciadas que possam atender a grupos diversos, a não ser que seja provocado por esses grupos. Ainda assim, sem garantias de efetivação. Mas, uma vez que não as realize, também não o será penalizado por essa negação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este ensaio identificou algumas razões por que governos democráticos tendem a focalizar os ideais de igualdade em detrimento dos de liberdade, evidenciando os interesses subjacentes nesse procedimento. O estudo realizado possibilitou a discussão de algumas questões sintetizadas abaixo.

a) O ideal de igualdade cumpre a função de reforçar ações e condutas louváveis e inibir as reprovativas ou indesejáveis. Por isso, exerce papel fundamental nos governos democráticos, pois é a partir delas que se legitimam valores que concorrem para a manutenção de uma determinada ordem.

b) O individualismo é a primeira consequência do ideal de igualdade; tem sua origem na democracia, e se instala entre os homens à medida que se igualam as condições de existência. Proporciona o distanciamento entre os homens, levando cada um a cuidar de si sem preocupação com a coletividade. Configura-se como um valor legítimo na sociedade e por isso um valor compartilhado por todos, pois cada homem ao se reconhecer no seu semelhante, adota igualmente a mesma postura de distanciamento por considerar essa postura uma conduta louvável.

c) Ao focalizar a igualdade, os governos democráticos partem do princípio de que os homens têm naturalmente necessidade de aprovação de sua conduta pelo que percebem que os seus semelhantes a avaliam. Por isso, a percepção do outro sobre a conduta individual assume importância central como mecanismo de coerção. Mas os indivíduos desenvolvem a capacidade de filtrar somente as paixões louváveis, e rejeitar as indesejáveis ou reprováveis, uma vez que estas tendem a atrair o repúdio da sociedade.

d) Na legitimação de condutas louváveis e reprováveis, a experiência e a imaginação contribuem com o processo de naturalização, tornando-as identificáveis e desejáveis ou repulsivas no conjunto da sociedade.

e) Ao governante é preferível enfatizar a uniformidade, pois esta lhe poupa “[...] o exame de uma infinidade de detalhes de que teria de se ocupar, se tivesse de estabelecer a regra para os homens, em vez de colocar todos os homens indistintamente sob a mesma regra” (TOCQUEVILLE, 2000, p. 365).

f) Os ideais de igualdade têm um caráter uniformizante com tendência a neutralizar as diferenças; daí o empenho dos governos em propagá-los pela impossibilidade mesma de dar respostas diferentes a diferentes indivíduos. É o que se verifica no caso de algumas políticas públicas: homogeneízam-se os indivíduos em torno de uma política unitária e indiferenciada ainda que não contemple a todos.

g) Com base nos ideais de igualdade, os governos dispõem de variadas formas pelas quais levam os indivíduos a se subordinarem às suas determinações, seja por apelos morais ou ideológicos, seja pela força das normas legalmente instituídas.

Considerando-se que são estas as razões por que os governos democráticos se empenham tanto em expressar os ideais da igualdade, pressupõe-se que, em última instância, subjaz o desejo de impedir a manifestação dos ideais de liberdade, pois são esses que concorrem para o questionamento da ordem estabelecida. Enquanto a igualdade surge aos homens a partir das normas e, assim, como manifestação externa, a liberdade, ao contrário, nasce do próprio homem. É manifestação interna que, antes de se expressar objetivamente, manifesta-se no desejo. É por isso que, enquanto a igualdade já se havia apropriado dos costumes e penetrado nos hábitos, “[...] a liberdade estava apenas nas ideias e nos gostos [...]” (TOCQUEVILLE, 2000, 117); ou seja, manifestava-se no desejo e como consequência dos males produzidos pela igualdade, que “[...] só se manifestam pouco a pouco [...] [e] se insinuam gradativamente no corpo social” (TOCQUEVILLE, 2000, p. 115). Daí por que a liberdade “[...] ter-se manifestado aos homens em diferentes tempos e formas, inclusive, fora das democracias [...]” (TOCQUEVILLE, 2000, p. 117), porque ela é própria do homem e não nasce das opiniões, usos e leis como a igualdade.

Por conseguinte, é contra a manifestação dos ideais de liberdade que os governos democráticos impõem continuamente os de igualdade, aperfeiçoando-os em diferentes épocas conforme os interesses da ordem vigente. Podemos compreender então que, uma vez que se tenha a igualdade como pensamento dominante na democracia, a vantagem para os governos democráticos está na possibilidade desse ideal favorecer os mecanismos de dominação, pautados na homogeneização e submissão dos indivíduos sob as mesmas regras.

 

THE IDEAL OF EQUALITY IN DEMOCRACY:
STATUS QUO POSSIBILITY CONDITION?

 

Abstract: This essay presents some answers to the following questions: what are the reasons that would lead democratic governments to emphasize the ideals of equality instead of freedom, when it is known that, empirically, men are absolutely unequal? What are the underlying interests in the propagation of these ideals? What advantages would governments have when they do this? In the search for these answers, Aléxis de Tocqueville's (2000) conceptions about equality and individualism were fundamental; and those of Adam Smith (1999) on moral feelings, precisely in relation to commendable and reprehensible conduct. The first section focuses on equality and the consequences of that ideal. It refers to the formation of individual conduct and reveals how society exerts pressure on this formation. The second section refers to the diverse and the unequal, and to the conducts that the ideals of equality presuppose, but which are not shown. As an essay, it is a bibliographic work with its own arguments. The argument is based on central ideas based on Smith and Tocqueville to which the positions of authors such as Joseph Schumpeter (1983), John Rawls (2003) and Mancur Olson (1999) are interspersed. It proceeds with the construction of ideas that oppose or that agree, but always in the search for answers that enable an understanding of the proposed themes. The answers to the proposed questions suggest that the interest of democratic governments in emphasizing the ideals of equality instead of those of freedom is to favor the maintenance of the current order based on the uniformity of behavior with a view to subordination. For that, it becomes essential to prune the ideals of freedom because they are supposed to be the ones to contribute to the questioning of the order.
Keywords: Adam Smith. Tocqueville. Schumpeter. Rawls. Olson. Democracy. Equality. Freedom. Individual Conduct. Coercion. Status quo.

 

 

REFERÊNCIAS

 

OLSON, Mancur. Uma teoria dos grupos sociais e das organizações. In:______. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EdUSP, 1999. p. 17-64.

 

RAWLS, John. Princípios de justiça. In:______. Justiça como equidade. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 55-112.

 

SCHUMPETER, Joseph A. A doutrina clássica da democracia. In:______. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p. 313-335.

 

SMITH, Adam. Teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 

 

TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América: sentimentos e opiniões. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

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Espero que tenha gostado e acompanhe os conteúdos da sequência.




*Trabalho apresentado originalmente à disciplina Teoria Política do Curso de Mestrado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí sob a orientação da professora Drª Guiomar Passos, visando à avaliação de desempenho na disciplina. Teresina, 2007.

**Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (Teresina, 2009). Licenciada em Filosofia pela mesma Universidade (Teresina, 1998). E-mail: soniaferreira.smf@gmail.com

 

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