Dons do Espírito: Mensagem nº 8 do quadro Compreensão Bíblica. |
Um blog de assuntos variados. Assuntos de fé e política, de experiências em Deus, projetos sociais, trabalhos científicos, histórias de vida, histórias de gatos, mensagens bíblicas, vivências pessoais. Enfim, um blog com uma variedade de assuntos associados à minha vida e à minha compreensão de mundo.
Você
está na sequência dos conteúdos do caminho Meus Atos de Fé em Deus. Para ver o
conteúdo anterior Clique Aqui. Para ver o seguinte Clique Aqui.
Era a semana
seguinte àquela da partida de minha mãe rumo ao Pai. Eu estava cheia de dores.
Não apenas na alma, mas no corpo todo. Minha coluna parecia estourada naquela
região que a gente chama de lombar. Parecia que todas as dores que eu não
sentira quando cuidava de mãe haviam se revoltado e resolvido se manifestar ao
mesmo tempo.
Então eu estava
muito sem poder me mexer: se em pé, não podia me curvar nem me sentar; se
sentasse, não podia me levantar; se levantasse, tinha primeiro que ficar de
estátua para depois andar; ao andar, o impacto do pé no chão ativava uma flecha
que atingia em cheio a minha lombar, o meu "mucumbu" como dizia meu irmão em nossa meninice. Então eu estava muito sem jeito mesmo. Até minha voz estava sentida.
Saía tão espremida que parecia o “tou fraco” de um capote rouco no cio. Então
eu precisava dar um jeito em mim e me colocar no lugar.
Da consulta ao
médico vieram o diagnóstico e a prescrição. Eu estava com um abaulamento na L4
e na L5. Então pensei: só podia ser mesmo um abaulamento porque tudo parecia
estar mesmo era abaulado. E muito! Aquelas dores revelavam que o resultado não
podia ser boa coisa. Mas o médico me tranquilizou explicando o abaulamento:
duas vértebras da coluna haviam se comprimido ou uma pressionava a outra ou
coisa parecida. O certo é que havia uma compressão e uma inflamação naquelas
vértebras que me deixavam cheia de dores. Mas segundo ele nada que não pudesse
ser resolvido com anti-inflamatórios e fisioterapia.
Então saí daquela
consulta com uma receita de medicação e outra de fisioterapia. A de medicação
logo encontrou o fundo de uma gaveta e lá ficou. Meu caixa estava vazio demais para a
atender. A de fisioterapia foi salva por meu plano de saúde ainda ativo. Ele me assegurou aquelas dez sessões. Era uma quinta-feira que me encontrava na terceira sessão sem
que eu sentisse uma melhorzinha sequer. Tanto que ainda me era temerário tomar um ônibus. A subida e a descida sempre cercadas de cautelas.
A partir daquela sessão, as seguintes somente continuariam cinco dias depois. No dia seguinte àquela, a clínica fecharia devido à paralisação dos ônibus na cidade. Então viria o fim de semana seguido de uma “segunda-feira enforcada” devido a um feriado na terça. Saber daqueles cinco dias sem fisioterapia me causou um medo sem tamanho. O que eu faria naquela espera se ainda continuava com tantas dores? Mas não vi alternativa senão esperar. Mas enquanto isso, recorri ao saber e ao poder superiores a todos os nossos e logo fui atendida. Veja a seção seguinte Deus em meu auxílio.
Era uma manhã
como outra qualquer. Daquelas que sempre me viam nos meus afazeres domésticos. Daquelas
que o vento corria sorrateiro como a dizer que as chuvas logo iriam embora. Que
me deixavam ver o sol se levantar lá longe e estender seus raios por todo o
quintal de nossa casa. Uma manhã que lá fora parecia igual às outras. Mas
dentro de casa eu estava toda atabalhoada. Teria que limpar a casa, mas
continuava sem poder me curvar. As dores permaneciam e me diziam que aquele fim
de semana seria longo por demais para as suportar.
Mas eu tinha
que cumprir a limpeza da casa, mesmo com a dificuldade de me curvar. Então, eu
estava no meio da cozinha com o rodo no seu vai-e-vem próprio de sua função. Tentava
enfrentar as dores naquele movimento, mas tudo o que eu conseguia era parar e
me perguntar como seria dali por diante se eu não melhorasse. Eu já ouvira
histórias de pessoas com hérnias de disco que não se curavam. Seria eu mais
uma? E a casa como ficaria se era eu a dar conta dela? Outra coisa não, mas
serviços de casa também não me faltavam e limpar era coisa de todos os dias. Inclusive porque eu morava com alguns gatos e muitas gatinhas.
Mas o certo é
que eu estava naquele vai-e-vem quando sem mais nem menos o cabo do rodo
quebrou. Fez um teco meio estridente e se tornou dois pedaços de uma madeira
qualquer. Eu olhava para aqueles pedaços sem entender. Era um rodo pouco usado.
A madeira parecia nova demais para quebrar tão rápido e facilmente. Então
pensei que só podia ser madeira do tipo resistência zero. Sem aquele rodo, aquela limpeza deixaria de ser, pois como conseguir outro?
Mas eis que
logo encontrei a solução. Peguei o pano de limpeza e o joguei aberto no chão.
Coloquei meus pés sobre ele e saí rodopiando pela cozinha num movimento meio dançante.
Então vi a maravilha que era passar o pano na casa com os pés. Melhor do que
com o rodo. Ao ver meus pés se tornando o próprio rodo, e de forma tão alegre e
dançante, logo vi o dedo de Deus naquela quebra. A mão da Providência. Deus em
meu auxílio. Eu não mais precisaria me curvar para passar o pano. Meu corpo se
mantinha ereto e assim a coluna não se incomodava. E meus pés e minhas pernas ainda
se tornaram tão dançantes como eu nunca vira. Nunca no mundo! Tudo certo! Tudo
resolvido! Obrigada, Senhor!
Assim parecia
se salvar a limpeza da casa em seus pisantes. Mas logo depois do impacto de
alegria percebi que a coisa não estava muito bem. O pano vivia fugindo de meus
pés, não conseguia se ajustar. Meus pés iam para um lado e ele para o outro.
Uma dificuldade começava a se impor. A minha alternativa já não parecia tão
certa. Mas eis que depois de mais uma lavagem do pano, ao jogá-lo no chão,
novamente Deus se mostrou aos meus olhos. O pano se esparramou no chão de tal
forma que foi impossível eu não vê duas cavidades uma ao lado da outra no ponto de eu colocar
cada um dos pés.
Diante daquela
visão, eu apenas fiquei maravilhada, sorrindo para Deus e o bendizendo. Ele me
mostrava algo tão simples que eu jamais observara ao utilizar aquele pano de limpeza.
Ele era de dupla face e foi esse aspecto que criou aquelas duas cavidades, uma
em cada lateral a partir da dobra de uma face sobre a outra. Então eu só
agradecia a Deus por aquela providência. Mais uma vez ele se mostrava a mim nas
minhas pequeníssimas ações do meu dia a dia. Mais uma razão para o bendizer e o
glorificar.
Com a minha nova
descoberta, o rodo perdeu o seu lugar no meu passar pano na casa. Com os pés, descobri
outro benefício que não apenas poupar a minha coluna. Revelava-se um ótimo
exercício para as pernas.
As
dores em meus abaulamentos L4 e L5 permaneciam. Assim como a receita médica
engavetada. Eu estava completamente descapitalizada. Enquanto cuidadora de
minha mãe, eu havia ficado sem trabalho; logo, sem renda. Como sua cuidadora e
curadora, eu administrava a renda dela acrescida da ajuda financeira de meu
irmão e algumas irmãs. Mas era a renda das despesas de minha mãe e da casa. Não
das minhas. Com a morte dela, a
aposentadoria logo foi suspensa. Apesar de ainda dispor daquela ajuda financeira, a situação não me era nada favorável.
Então como não havia meios de pensar em farmácia nem de fisioterapia naquele momento, não vi alternativa senão recorrer a Deus e à Mãe Rainha. Caminhos de fé que eu aprendera a conhecer desde os cuidados com a minha mãe. Em meio àquelas ações de cuidados por algumas vezes vi a manifestação de Deus de forma bem direta. Então eu já sabia que nele podia confiar.
Nos mesmos cuidados, conheci também Mãe Rainha, nossa
Senhora peregrina devotada por católicos e católicas como a santa das famílias.
Minha mãe era devota e a cada mês recebia em seu altar a imagem daquela santa. Então eu a acompanhava em sua devoção como mais uma ação
de cuidados. Rezávamos o terço e cantávamos o hino de consagração à mãe peregrina.
Em oração então pedi a Deus em nome de nosso Senhor Jesus Cristo que me livrasse daquelas dores; que me devolvesse os movimentos e cuidasse da minha saúde como dela cuidara por todo o tempo de meus cuidados com a minha mãe. Da mesma forma, em oração consagrei todo o meu corpo à Mãe Rainha, atribuindo a cada mistério próprio de sua oração um dos membros de meu corpo. Inclusive a minha lombar.
O resultado desses meus atos de fé foi imediato. Passados os cinco dias para retomar a fisioterapia, todas as minhas dores haviam passado. Eu já não sentia um incômodo sequer nos abaulamentos da L4 e L5. Minha coluna já não reclamava de nada. Eu me sentia completamente curada. Retornei à clínica pensando suspender as demais sessões agendadas. Não havia mais necessidade.
No entanto, argumentaram que eu deveria continuar e me explicaram algumas razões. Como não lhes falei dos meus atos de fé, aceitei seus argumentos sem os questionar e permaneci nas sessões. Afinal, havia massagens e elas certamente não me fariam mal algum. E eram boas. Assim foi.
Com esses aprendizados eu me fortalecia nos caminhos da fé em Deus e em nossa Senhora, mãe de nosso Senhor Jesus Cristo. Assim eu aprendia cada vez mais o caminho da fé em Deus. Porém, uns dois anos depois eu entenderia que para essa fé não precisamos recorrer a intercessores. Eu deixaria então de recorrer à Nossa Senhora e procuraria fortalecer minha relação com Deus, tudo em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Assim foi. Assim será com fé em Deus!
Aprender
a ver a ação de Deus nas pequenas coisas do meu dia a dia era um aprendizado e
tanto para mim. Um amadurecimento em Deus. Um crescimento na fé. Mas falar
dessas coisas talvez seja certamente simplório demais para muitas pessoas. Tão
insignificantes que certamente eu nem seria ouvida. Como certamente talvez nem
lida. Quem afinal perderia tempo falando das coisas ordinárias da vida? Essas
coisas que de tão reles sequer ocupa espaço em nossa atenção? Afinal, fomos
acostumados pelo conhecimento humano a pensar o grande e nele nos mirar. É como
se nos disséssemos: olhe para o grande e seja um grande também. Ou uma grande.
Tudo
bem que seja assim. O problema é que esse grande projetado no conhecimento
humano não é o grande referenciado como Deus. Quando nos dizem: olhe para o
grande não é o mesmo que nos dizer olhe para Deus. Pelo contrário, é o grande
projetado no próprio homem. Seja você o grande.
Diferente
disso, eu aprendia a ver no meu dia a dia não apenas a grandiosíssima ação de Deus,
mas o próprio Deus se materializando diante de mim por meio de coisas tão
pequenas como a quebra do cabo do rodo.
Então
entendi: é nas pequenas coisas que ele se manifesta. Pelo menos para algumas
pessoas. Pelo menos para mim. Talvez porque haja pessoas que não o saberiam reconhecer nas grandes. Talvez eu seja uma dessas pessoas. E quem sabe não seja isso mesmo? Aprender a nos voltar
para as pequenas coisas para poder compreender as grandes? E assim aprender a ver o grande sob novos olhares? Seja como for, é Deus quem nos dá esse discernimento quando assim o desejamos.
A você,
meus agradecimentos.
Deus
esteja com você!
Sônia
Ferreira
Teresina, 23
de maio de 2021.
Você
terminou de conhecer o quarto conteúdo do caminho Meus Atos de Fé em Deus.
Espero que
tenha gostado e acompanhe os conteúdos da sequência.
Convite Siga Nós! Gato Epifânio: guia de conteúdo do caminho Atos de Fé em Deus. |
Sônia Maria
Ferreira Lima**
Antônia Jesuíta de
Lima***
A ocorrência é o
objeto constante do trabalho policial-militar. É a evidência de que o policiamento
acontece efetivamente. Constitui uma atividade que se impõe entre as ações das
polícias militares com uma exigência intrínseca de pronto atendimento visando
ao restabelecimento da ordem. Por isso, é uma atividade da qual as polícias não
se podem esquivar. Refere-se ao que Bayley (2006, p. 143) denomina “situações” para designar o campo de
interação entre a polícia e o público ou, mais precisamente, “[...] o caldeirão
no qual ocorrem as interações”. O seu atendimento, portanto, constitui o ponto
de interseção entre as necessidades da população e a resposta da polícia.
Na visão de
policiais militares, o atendimento à ocorrência parte de duas formas distintas
de compreensão: uma relativa a crimes e a outra fora desse âmbito. No caso de
ocorrência de âmbito criminal, a polícia é convocada a agir diante de uma
violação da ordem que não lhe foi possível evitar. Por isso, ao atendimento à
ocorrência é imposta a obrigação de restabelecer a ordem violada de modo a
evitar o agravamento da situação posta. Como o crime é o que representa essa
violação, o homicídio é o que a singulariza em grau máximo; logo, é o crime que
amplia a exigência do pronto atendimento.
De outra forma, quando
a ocorrência acontece fora do âmbito criminal, seu atendimento é considerado, especialmente,
uma questão de ajuda e pacificação. Assim, ao atender a uma ocorrência dessa
natureza, a polícia se insere como mediadora de conflitos, procurando restabelecer
o equilíbrio nas relações interpessoais. Neste caso, não se considera uma ordem
violada, mas uma ordem em conflito.
Em se tratando,
pois, de atendimento à ocorrência, as polícias militares atuam entre duas
exigências: uma de natureza criminal que exige o restabelecimento da ordem e
outra de natureza não criminal que exige a resolução de conflitos. Entre uma
exigência e outra, porém, o atendimento à ocorrência leva a polícia a um contínuo
colocar-se à disposição da população conforme as suas necessidades.
Esse fato
evidencia a natureza do trabalho policial-militar realizado sempre em meio a múltiplas
possibilidades. Ao cumprir sua escala de trabalho, o policial militar vê-se
continuamente “[...] mergulhado na idiossincrasia das circunstâncias, das
situações voláteis e fugidias [...]” (MUNIZ, 1999, p. 165) que o levam a
trabalhar num ambiente sujeito à imprevisibilidade, à diversidade, ao múltiplo
pela natureza mesma do trabalho multifacetado que realizam.
Em tal contexto, o envolvimento emocional em
detrimento do estritamente legal ganha relevância, uma vez que o policial
militar atua num campo de subjetividades no qual, não raras vezes, acaba se
sobressaindo a marca pessoal, própria, individualizada. Logo, é nessa relação
entre o atendimento à ocorrência e o envolvimento emocional que se verificam os
meios particularizados da ação policial-militar. É nesse contexto, então, que
se inserem os objetivos deste artigo: apresentar as circunstâncias nas quais a
emoção se sobrepõe aos procedimentos legais e demonstrar como os policiais conduzem
a ocorrência em relação ao controle de suas emoções e às diretrizes institucionais.
Em termos
metodológicos, este artigo se baseia em dados oriundos de entrevistas
individuais semiestruturadas junto a policiais militares com atuação no
policiamento ostensivo na cidade de Teresina. Evidencia a dinâmica
policial-militar retratada pelos próprios policiais que a vivenciam no seu dia
a dia de trabalho. A análise das entrevistas procurou identificar nos discursos
policiais-militares procedimentos e formas de ação, além dos significados
produzidos e dos saberes construídos no seu trabalho de policiamento.
No atendimento a ocorrências, a
tendência é tornar os conflitos interpessoais solucionáveis pela força e pela
prisão, inclusive no âmbito doméstico. Por isso, é possível perceber na ação
policial-militar certa dificuldade na condução de ocorrências cujos conteúdos e
culpabilidades não estejam bem definidos, o que torna a finalização da
ocorrência conforme o poder discricionário do policial que a conduz, que tanto
pode optar por sua finalização pelo diálogo e pacificação dos ânimos, quanto
pelo encerramento do caso, sem a resolução do problema, baseando-se, inclusive,
numa compreensão de que são acionados para “prender” e não “para conversar”.
De qualquer modo,
o atendimento à ocorrência revela como os policiais tendem a conduzir sua ação em
relação ao controle de suas emoções e às diretrizes legais repassadas pelo
comando. Na fala do policial abaixo, é possível uma noção do que seja comandar
uma ocorrência.
Cada ocorrência é uma ocorrência. Eu vou ter
ocorrências que nem o próprio major aqui tenha passado na vida dele. Então, a
ocorrência que acontece no dia-a-dia difere, talvez, da que ele tenha visto há
vinte anos [...]. Então, o que acontece? Existe a hierarquia dentro da viatura.
O motorista é o motorista. Cada um tem sua função. O comandante da viatura é o
comandante da viatura, o nome já ta dizendo. E o patrulheiro é o patrulheiro.
Mas, numa ocorrência... Eu vou ter condição de dialogar numa ocorrência? [...].
Se for um tiroteio, eu não vou ter tempo de dizer nada pra ninguém. Então, cada
um vai fazer o que acha que deve ser feito, o que acha que aprendeu. Que acha
não! Que aprendeu nas instruções que nós tivemos. Então, cada um ali tem uma
missão específica. Aí, eu vou pra briga de vizinhos. Então, lá é uma coisa que
se subentende que é um pouco mais light
e tudo. Então, eu, como comandante, vou poder coordenar, dar o meu pitaco. Eu
quis dar esses dois exemplos, porque existe aquela ocorrência em que eu não vou
ter tempo de determinar nada, e nem dizer como que vai ser feito, que é a
questão do tiroteio, da perseguição. Então, cada um vai ter que fazer da
maneira que aprendeu. Então, assim: quando a gente entra numa guarnição, a
gente tenta conversar com os companheiros... a gente tenta conversar entre si.
Mas, [...] de repente, aparece uma ocorrência que a gente nunca viu. Então, a
gente não conversou sobre essa ocorrência. A gente nunca viu! É a primeira vez,
né!... Já é diferente daquela da briga do vizinho com a vizinha por causa do
esgoto, que a gente vai lá tentar dialogar, entendeu? (Sargento PM com 22 anos
na PMPI).
Conforme esse discurso, a
vivência policial-militar está constantemente permeada pelo novo. No seu
cotidiano de trabalho, com papéis hierarquicamente bem definidos, o policial da
linha de frente deve estar preparado tanto para o corriqueiro, repetitivo,
usual, quanto para o inusitado, o imprevisto. Em relação ao usual, supõe-se que
o policial já disponha de um conhecimento acumulado. Assim, diante de um
tiroteio, embora ocorrendo esporadicamente, espera-se que ele já saiba como se
conduzir na ocorrência, desempenhando a sua missão específica, conforme o que
aprendeu no processo de instrução. É o caso, então, do “cada um por si”, embora
se considerando os demais companheiros. No caso da briga de vizinhos,
considerada mais light, surgem espaços
para o diálogo, mediante orientações e pacificação dos litigantes. Por outro
lado, é possível uma ocorrência inusitada, ainda não capturada ou apreendida
pelo saber institucional. É o momento, então, de os policiais ampliarem os seus
conhecimentos práticos, o que só a vivência cotidiana lhes possibilita.
Não sem razão,
pois, o maior desafio do policial militar da linha de frente, talvez não seja
apenas desempenhar com habilidade e destreza as ações que lhe são rotineiras e
familiares, mas aquelas que se lhes apresentam num átimo, entre o inusitado e a
surpresa, sem esquecer, porém, que, mesmo o corriqueiro, pode-se revestir do estranho
e não familiar, pelas peculiaridades próprias e inerentes a cada situação.
Afinal de contas, mesmo em se tratando da usual briga de vizinhos, há de se
convir que os sujeitos são outros, subjetividades diferentes, o que, de certa
forma, singulariza a ocorrência, tornando-a única. Inclusive, é no campo da
subjetividade que o atendimento a ocorrências tende a se diferenciar, tomando
rumos distintos às diretrizes institucionais, como sugerem os depoimentos a
seguir.
[...] quando se efetua a detenção ou prisão de uma
determinada pessoa, a gente sempre orienta no sentido de que esses policiais
têm é que preservar aquela pessoa, embora possa ter cometido um crime de
qualquer natureza. Ou seja, o policial, ele não pode se envolver emocionalmente
na questão da ocorrência. Então, isso aí é uma questão básica. Você está lá na
linha de frente como policial pra resolver o problema. Então, pega-se as
partes, independente do que aconteceu, e conduz-se elas para o distrito
policial que, entendemos nós, ser o local mais adequado para a solução e
resolução dos problemas. Por que? Porque lá no distrito vai ter uma pessoa que
vai está fora daquela situação, que vai poder julgar melhor aquele ato que foi
praticado. E isso também é uma diretriz, e uma norma de como a gente deve agir.
Existe o abuso? Existe o excesso? Existe, porque a questão emocional é inerente
a cada pessoa. Então, muitas vezes, a gente... o policial que está na linha de
frente, ele age de uma maneira diferente daquilo que é passado pra ele. Mas o
normal, o normal, eu não digo que é feito assim, mas o normal e a orientação
que o comando dá, é que o policial, antes mesmo de ele assumir o serviço, é
sempre relembrado como ele deve proceder, até mesmo na questão da abordagem às
pessoas, ao cidadão. (Coronel PM com 22 anos na PMPI).
Embora os policiais tenham suas
ações respaldadas na lei, e seus modos de procedimento reafirmados diariamente,
ao assumir sua função, nem sempre as orientações recebidas são observadas com o
rigor da lei. Como diz uma policial entrevistada “[...] lá na hora é que você
vai saber como vai fazer a situação. Então, a questão da norma existe, e é pra
ser feito daquela forma ali. Mas, nem sempre [...] ela vai ser cumprida à
risca, porque é a situação que vai determinar, é o momento.” Na visão de outro policial,
o que impede a observação das normas é a condição emocional do policial, que o possibilita
tomar decisões diferentes do que lhe foi prescrito, inclusive, com ações
abusivas ou violentas.
Os depoimentos a
seguir revelam aspectos peculiares à ocorrência que desencadeiam o envolvimento
emocional, facultando à ação policial a transgressão das regras e a violência,
o que decorre de um conjunto de situações que preterem a lei, tornando-a não
totalmente obedecida no agir policial.
A gente tem que fazer o máximo para ter aquele
controle emocional, pra poder saber conduzir aquela situação de forma
conveniente, sem fugir dos parâmetros legais. Mas, isso aí, sempre tendo isso
em mente: os parâmetros legais. Nós só trabalhamos... só devemos trabalhar com
os parâmetros legais. Agora, a resposta é de acordo com o sujeito. Ela vai ser
de uma forma que pode ser até o uso da força letal. De repente, você chega numa
ocorrência que não dá pra você chegar com toda aquela seqüência. Às vezes, ela
vai direto pra força letal. Quando? Quando o indivíduo é... um roubo à mão
armada. Aí, o sujeito vê a viatura, usa lá a arma que ele está usando contra
nós. Aí, temos que ter a resposta. E a resposta será como? Através do uso da
arma de fogo. É por isso que eu digo: o policial, na hora da ocorrência, quando
ele recebe o chamado pelo rádio, ele já deve está ligado no que ele vai fazer.
(Tenente PM com 14 anos na PMPI).
Às vezes, não dá pra seguir [as normas] do jeito que eles
querem, não, porque, às vezes, você chega... [...]. A função da polícia militar
é dominar o elemento. Dominou, pronto! Dominou, levou pro distrito, pronto.
Agora, tem elemento que reage. Você tem que dominar ele. Às vezes você chega
num local, atiram é na viatura. Aí você vai descer pra conversar? Negativo.
Você tem que atirar neles também. Você não vai morrer, né? (Soldado PM com 17
anos na PMPI).
Embora se tenha em vista a
observância dos parâmetros legais, em determinadas ocorrências o comportamento
do sujeito que as motiva é que determina a resposta do policial em termos de
decisão a ser tomada. Por conseguinte, a reação do sujeito contra a polícia,
com uso de arma de fogo, é vista como um convite aberto à força letal, sem
meios termos. E neste caso, a reação da polícia com uso de armamento é
considerada um revide à ação do infrator, ou seja, um mecanismo de defesa
contra possíveis danos físicos por ele sofridos.
Em tal situação,
na qual ambas as partes agem com armas de fogo, mais do que a captura de um
sujeito infrator ou o cumprimento da missão, o que passa a estar em jogo é a
vida, tanto do sujeito quanto dos policiais. No entanto, embora o primeiro esteja
em desvantagem, por ser apenas um contra a máquina armada do Estado, ele se
reveste de uma dimensão maior, pois, como infrator ou “bandido”, é posto na condição
de inimigo – o “outro”, o estranho –, contra o qual os policiais precisam
defender não apenas a sociedade como um todo, mas, antes, a si próprios no
instante mesmo da ocorrência.
Considerando que
o centro da experiência policial gira em torno da combinação de perigo e
autoridade, e que a presença do perigo coloca em risco o discernimento
necessário para o uso da autoridade, a observação às normas legais passa a
variar conforme o grau de perigo a que os policiais estão submetidos (SKOLNICK,
1966 apud BRETAS, 1997). Assim, numa situação em que a própria vida está em
risco, não é possível seguir uma sequência de procedimentos pré-definidos, como
diz um entrevistado. Em outras palavras: não é possível seguir fielmente as
estratégias operacionais, pautadas em ações calculadas, planejadas, refletidas,
racionalizadas, próprias de um lugar do poder e do querer próprios (CERTEAU,
2007), circunscritos à organização policial-militar.
De modo geral,
esses depoimentos revelam que as ocorrências, uma vez espaço do imprevisível e
do contingente, trazem peculiaridades ainda não inseridas em sistemas e
discursos totalizantes; ainda não organizadas pelo postulado de um poder; ainda
estranhas às regras próprias da racionalidade, que se tenta impor com base no
direito adquirido de um saber próprio. É o que sugere ainda o depoimento
seguinte, ao mostrar que a imposição racional é perpassada pelo envolvimento
emocional, um indicativo de que a ocorrência não é apenas o espaço de
procedimentos objetivos, mas também o espaço no qual aflora a subjetividade
policial-militar frente a elementos circunstanciais da interação com o público.
A gente procura trabalhar sem distinguir, claro, as
classes sociais, porque nós somos neutros, do jeito que atende o empresário,
atende o seu Manuel. Mas, [...] deixa muito a desejar. Assim... porque, sem
você querer, você se envolve, viu? Porque o seu Manuel bem acolá... você se
envolve mais com ele porque... “Oh, pô, o cara só tinha uma televisão! Levaram!
É muita sacanagem!” Você já fica..., né? [...]. Sem você querer, você pegou um
lado emocional. O outro bem acolá, o empresário, chega: “Rapaz, levaram a minha
televisão”. Simplesmente eles falam. Não olham nem pra ti. Simplesmente, você
faz a mesma coisa com ele. A gente vai dar uma volta na área, dá uma volta e de
lá vai embora. Pronto! Quer dizer, a gente procura não se envolver
emocionalmente nas ocorrências, mas, às vezes, sem querer, a gente se envolve.
[...]. Numa briga de casal, qual é a função da polícia? Chegar lá, conduzir o
casal pra delegacia especializada. Numa briga de bar? Chegar lá, conduzir as
partes pra delegacia, pro distrito da área. Mas, quando você chega lá, o
indivíduo espancou a mulher, e sem você querer, você já viu aquela mulher
mutilada, bem machucada. Você já se envolveu. Sem querer, você já se envolve
emocionalmente. Já começa a querer... Às vezes, você começa a querer tomar
partido, coisa que não é pra acontecer, acontece. Na realidade, acontece. Briga
de bar? O cara chega, o cara está esfaqueado. “Pô, vamos levar!” Liga pro
resgate. “Quem foi? quem foi?” Você já partiu pro seu lado emocional. Sem
querer, você se envolve na ocorrência. Coisa que não é pra acontecer, é se
envolver na ocorrência. Mas, às vezes, acontece. E muito! Muitas vezes. A
polícia, em geral, ela não pode está tomando partido, porque é neutra. Mas,
como nós somos um pouco... [...], a gente se envolve. (Soldado PM com 20 anos
na PMPI).
Conforme este depoimento, em se observando
as normas institucionais, neutraliza-se na ação policial a possibilidade de
distinção entre os segmentos sociais, priorizando o atendimento com
neutralidade, cumprindo o que tem que ser feito independente da situação, o
que, basicamente, significa conduzir as partes envolvidas à delegacia distrital
ou à especializada. Dessa forma, ao policial não cabe envolver-se emocionalmente
na ocorrência, pois, do contrário, sob a influência das emoções, a ação
policial tende a se desviar das normas institucionais, apresentando respostas distintas
à orientação racional-legal.
Entretanto, como
revela o entrevistado, no atendimento à ocorrência, muitas vezes, a emoção
sobrepõe-se às normas, já que a tendência é o policial “tomar partido”,
envolvendo-se emocionalmente no contexto das circunstâncias que fragilizam as
relações dos envolvidos no conflito. Inclusive, um dos fatores que contribui
com o envolvimento emocional é o policial se identificar com a parte considerada
a mais “fraca”.
Assim, em
ocorrência envolvendo lesão corporal, na qual a vítima assume intrinsecamente
essa condição por ser a parte lesada, ao tomar partido, o policial não apenas
nega a neutralidade da lei, como tende a reparar o dano com o uso abusivo da
força; ou seja, passa a agir de modo extrajudicial, com ações que ultrapassam
os limites de atuação que lhe outorga a lei, ferindo, assim, o Estado de
direito (BRICEÑO-LEÓN; PIQUET CARNEIRO; MIGUEL CRUZ, 1999). De outra forma, em
ocorrências nas quais pobres e ricos são denunciantes de furtos, a tendência é
o pobre tornar-se igualmente a parte mais fraca, já que, para ele, o dano é
proporcionalmente maior, por ser o pobre desprovido de recursos que lhe
possibilitem a reposição do bem perdido, o que pode não ocorrer com o rico,
cujo bem é passível de ser reposto sem muitas dificuldades.
Além disso, o
brio ferido surge como outro fator a contribuir com o envolvimento emocional do
policial na ocorrência. A postura de
indiferença do rico ao comunicar o furto, evidenciada no fato de que “não olha
nem pra ti”, é vista como destrato, indecoro, um não reconhecimento da
autoridade policial-militar, um quase desacato, o que ativa no policial um
sentimento de insignificância diante de alguém que lhe deveria prestar
deferência, pois, afinal de contas, o policial simboliza a lei e, no
atendimento à ocorrência, ele é a autoridade. Sendo assim, com o orgulho ferido
pela indiferença do outro, a resposta do policial é igualmente de indiferença,
quando ele diz que “simplesmente você faz a mesma coisa com ele: dá uma volta
na área e de lá vai embora”, ou seja, “faz de conta” que age na resolução do
problema, sem esforços na recuperação do bem.
Tal reação tem a
ver com o uso do poder discricionário ou autonomia policial-militar, entendido
como a ampla liberdade de decisão de que dispõe o policial para decidir os
rumos da sua ação ou suas diferentes formas de manifestação quando na execução
de seu trabalho (MONJARDET, 2003). Essa postura pode ser entendida também a
partir do conceito de “tática”, utilizado por Certeau (2007, p.100), para se
referir à “[...] ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio”,
e que se apropria do lugar do outro para poder se manifestar, exatamente no que
há de impositivo, no espaço próprio das regras.
Foucault (2007a)
trata essa mesma questão em termos de micropoder, quando ele afirma que o poder
não está apenas no outro, localizado num determinado nível, nos postos
hierárquico-superiores da polícia, por exemplo, mas se dissemina na base, nos
níveis mais elementares, onde ele se reveste de práticas reais e efetivas, onde
ele se implanta e produz efeitos reais, produz um saber. Assim, quando o
policial diz que “a gente vai dar uma volta na área, [...] e de lá vai embora,
pronto!”, ele está utilizando o poder juntamente com os recursos que ele lhe
confere, como a viatura, que lhe possibilita dá a volta no entorno e mostrar aos
envolvidos que está fazendo o que lhe é ordenado.
No entanto, ele
subverte esse poder, quando deixa de fazer o que lhe é imposto como regra, ao
não se empenhar o suficiente para dar a resposta desejada, e apenas “dá uma
volta e de lá vai embora”, encerrando a ocorrência. Embora com orgulho ferido,
já que atingido naquilo que lhe é muito caro como policial militar – a sua
autoridade –, de certa forma desdenhada pela prepotência do denunciante, o
policial não pode negar explicitamente a ação e, assim, utiliza o recurso do
“faz de conta que, embora mascarando a ética policial-militar, possibilita-lhe
observar a diretriz que lhe obriga a “jamais dizer não pra uma solicitação”,
como diz um entrevistado.
São nesses termos
que outro entrevistado afirma que os policiais só devem trabalhar com os
parâmetros legais, mas “a resposta é de acordo com o sujeito” autor do crime
que motiva a ocorrência, chegando até ao uso da força letal. E já que cada
ocorrência tem suas peculiaridades, o entrevistado refere-se àquelas em que a
ação do policial é conforme o estado da vítima, pois, ao vê-la mutilada, ou
machucada, ou esfaqueada, “sem querer você já se envolve emocionalmente [...] e
começa a querer tomar partido”.
De qualquer modo,
implicitamente, estes discursos revelam que o policial tende a extrapolar o uso
legal da força quando atingido em aspectos de sua subjetividade que o associam
diretamente à problemática suscitada na ocorrência. Sugerem, pois, que os
fatores externos que ativam suas emoções, tanto podem partir da forma pessoal
como o sujeito se refere à polícia, ao denunciar um dano sofrido, quanto do
comportamento do agente infrator ou autor de um crime, ou quanto ao estado
físico da vítima.
Em tais
circunstâncias, a ocorrência deixa de ser vista apenas por seus aspectos
legais, e se reveste de elementos subjetivos, já que o policial envolve-se
diretamente na situação-conflito que a motiva, ou seja, passa a agir como
pessoa, negligenciando a lei. É nesse âmbito que surgem as possibilidades da
ação abusiva e violenta da polícia que, inclusive, pode ser interpretada como
uma tática, posto que se apropria de um saber que aproveita as ocasiões das
quais depende, “[...] para captar no voo as possibilidades oferecidas por um
instante. [Um saber que, para se manifestar, utiliza-se, vigilante], das falhas
que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder
proprietário” (CERTEAU, 2007, p.100-101).
É nesse sentido
que, para Foucault (2007a, p. 141-142), o poder não se reveste apenas de
aspectos negativos, mas traz em si mesmo positividades, já que “[...] exercer o
poder cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informações e as utiliza.”
Para ele, se o poder tivesse apenas a função de reprimir, de agir por meio da
censura, da exclusão e do impedimento, não seria tão forte a ponto de produzir
efeitos positivos no nível do saber, já que em vez de impedi-lo, ele o produz.
E no complexo contexto do atendimento à ocorrência, constitui uma parte da
técnica policial, sendo, portanto, ao mesmo tempo, saber, competência e código
(MONJARDET, 2003).
O atendimento a
ocorrência possibilita sempre um aprendizado novo, um saber ainda não apropriado
pela racionalidade institucional. O estar na rua possibilita um conhecimento
que os policiais o sabem no dia-a-dia, o que torna o aprendizado da rua mais
rico e diverso do que o da formação acadêmica. Inclusive, na visão de alguns
policiais, os cursos de formação técnica não conseguem dar conta da diversidade
emergente, em constante mutação.
Conforme Muniz
(1999), isso não significa que os procedimentos formais e universais do tipo
“de acordo com o script” não tenham a
sua utilidade, e também não produzam resultados consequentes, embora se deva
reconhecer que esse saber anuncia que negligenciar tais procedimentos em favor
da aplicação exclusiva de princípios gerais, termina por limitar a eficácia da
ação escolhida.
Face à complexidade da demanda pelos seus serviços e a
pressão dos acontecimentos, todo PM aprende rapidamente que as regras
universais de trabalho, quando desencarnadas das experiências concretas de
policiamento, tendem a ser de pouca serventia. Parece claro, portanto, que um
saber de ocasião, construído e recapitulado a cada atendimento, apresente uma
forte propensão para superestimar uma leitura particularizante e contextual dos
eventos e dos seus cursos. (MUNIZ, 1999, p. 167-168).
Além disso, tanto nos espaços públicas
da rua quanto no espaço privado da casa, a forma de atuação da polícia no
atendimento a ocorrências torna-se tanto mais usual quanto mais aquela situação
é vivenciada no seu dia-a-dia de trabalho, o que lhe possibilita um saber que
não se constrói apenas na academia de polícia, mas a cada ação policial na
prática cotidiana. Essa confluência de saberes revela que a instituição policial-militar
dispõe de um saber próprio, construído historicamente, que é transmitido aos
policiais nos treinamentos e cursos de qualificação, e que determina suas
posturas tanto internamente em relação à hierarquia institucional, quanto
externamente nas atividades de policiamento. Acontece, porém, que esse saber
institucional potencializa nos policiais outros saberes, como mecanismos de
resistência, sendo estes que, de certa forma, influenciam mais diretamente a
sua prática cotidiana. Talvez por isso, conforme Maia (2001), o policial
militar tende a se considerar mais policial quando leva consigo a experiência
das ruas.
O aprendizado das
ruas, por sua vez, é próprio dos policiais que ocupam os últimos graus
hierárquicos da organização policial, ou seja, os praças (subtenente, sargento,
cabo e soldado), que não dispõem de autoridade no quartel – espaço no qual o
comando é próprio dos oficiais (coronel, major, capitão, tenente). Os
subtenentes e sargentos participam de atividades internas do quartel somente
enquanto auxiliares dos oficiais na instrução das tropas. Os cabos e soldados,
por sua vez, são exclusivamente da execução (PIAUÍ, 1981) e, assim, praticamente
não acumulam responsabilidades internas. E, como são os últimos da escala
hierárquica, suas responsabilidades restringem-se basicamente às suas próprias
ações, seja diante do público com o qual interagem, seja diante dos colegas de
mesmo grau hierárquico com os quais mantêm relação horizontal, ou diante dos
seus superiores hierárquicos a quem devem obediência.
No entanto, uma
vez na rua, eles dispõem de autonomia suficiente para tomar a decisão que lhes
convém, observando ou não as orientações internas e os parâmetros legais. Por
conseguinte, o poder e a autoridade que lhes são negados internamente na
hierarquia institucional são disponibilizados diante do público com o qual
interagem, uma vez que a ação final na condução da ocorrência, muitas vezes, termina
sendo de sua inteira responsabilidade. Assim, embora ciente das regras que o
orientam na relação com o público, nem sempre é possível observar essas
orientações, como revela a fala abaixo:
Eu procuro [...] tratar todo mundo por igual. Mas, existe
aquela coisa que deixa a desejar. Quando é preciso fazer uso da força, eu faço,
dentro... Não vá pensar que eu aliso, que eu não aliso, não! [...]. O cabra
errou?! Meu amigo, eu não quero nem saber, não! Sabe por que? Porque na hora
que eu erro aqui dentro, eu tenho meu corretivo disciplinar! Então, por que eu
vou alisar?! Aliso não! É preciso fazer o uso da força?! Vamos fazer o uso da
força pra dominar o homem! Então, eu vejo assim, e procuro... Muitas vezes, a
gente erra, tentando acertar. E dentro desses erros, a gente aprende. (Soldado
PM com 20 anos na PMPI).
Este depoimento traz a conotação
de que a infração à regra ou à ordem estabelecida, vista como erro, traz a
exigência de pronta punição com veemência. O fazer uso da força se, por um
lado, refere-se à aplicação da lei, por outro, sugere a violência embutida
nessa ação, tanto que, como diz o policial, não dá para “alisar” com tratamento
suave, ou seja, com a simples aplicação da lei. Implicitamente, está a idéia de
que a força é aplicada impetuosamente, sem piedade.
Importa observar
que a razão pela qual o policial justifica o seu “não alisar” refere-se à
punição que ele próprio sofre ao violar regras disciplinares estabelecidas na
instituição. É como se ele tivesse que, necessariamente, reproduzir em outrem a
punição sofrida em termos de corretivo disciplinar. Isto porque a violação das
obrigações ou dos deveres policiais-militares é considerada crime, contravenção
penal ou transgressão disciplinar, regulamentados em leis específicas[1].
Assim, se ele é
punido por sua indisciplina ou transgressão, para ele, o indivíduo que erra é
igualmente indisciplinado e merece o corretivo. Seu depoimento sugere que a
ação do policial militar de linha, de certa forma, é influenciada pela
experiência vivida na instituição em relação a seus procedimentos internos,
pois, como indaga um entrevistado “como é que eu vou prestar um bom serviço se
eu vejo que sou tratado como marionete? Se vejo que sou tratado como objeto? Eu
vou refletir isso lá fora [...]” (Soldado PFEM com 8 anos na PMPI).
Por outro lado,
da mesma forma que o policial está ciente das regras que orientam a sua ação,
ele também reconhece o erro ao violá-las. O “a gente erra, tentando acertar”
traz uma conotação de que há um objetivo maior na sua ação que não será
alcançado caso não se usem meios que, embora não sejam os puramente
recomendados, são os considerados adequados para o objetivo pretendido. Sendo
assim, da mesma forma que o policial reconhece a violação das regras tanto em
relação aos procedimentos disciplinares quanto em relação ao público com o qual
interage, também reconhece que, às vezes, a própria instituição possibilita-lhe
a “quebra” das regras, sem a qual não seria possível desempenhar a sua função e
alcançar o objetivo desejado. É o que sugere o entrevistado abaixo, ao afirmar
que
[...] o recomendável [nas viaturas] seria três
policiais, no mínimo. Mas, infelizmente, pela escassez de policiais, a gente
muitas vezes trabalha apenas com dois. Muitas vezes, o motorista não pode abandonar
a viatura, porque a viatura é de responsabilidade dele. Mas, em alguns casos, a
gente acaba... tem que abandonar pra poder acompanhar o comandante, pra atender
a ocorrência. E já teve caso que, quando a gente voltou, tinha a viatura com
vidro quebrado. E aí, fica difícil se trabalhar dessa forma. Quando são três
policiais, fica o motorista. Mas, quando são só dois, às vezes, a gente vai
pela questão da adrenalina mesmo. A gente vai pela questão de querer
resolver... Mas, não é recomendável deixar a viatura. (Soldado PM com 14 anos
na PMPI)
A especialidade dele [do motorista] é mais do que a
dos outros, porque ele tem que ajudar os colegas, e é responsável pela viatura.
É mais do que a dos outros, a responsabilidade dele. A do comandante e a do
patrulheiro, ali, é só chegar e agir. A responsabilidade da viatura é dos três,
mas, mais é do motorista. Sempre tem que ficar um na viatura. No caso, é o
motorista. Aí, vão os dois. Se os dois não resolverem, aí chama ele também. Aí,
tranca a viatura e vai. Aí, avisa ao COPOM que vai sair da viatura, porque de
repente o COPOM pode chamar, chamar e não atender. Aí: “Estão onde? Estão
dormindo?” Tem esse problema, às vezes, que saem os três e não avisam pro COPOM
[...]. Sempre tem que avisar. (Soldado PM com 17 anos na PMPI).
As regras são implantadas, mas
nem sempre são asseguradas as condições necessárias para que sejam cumpridas, o
que influencia a ação do policial ao se conduzir na ocorrência, já que fica a
seu critério a escolha das alternativas possíveis na consecução dos objetivos ou
cumprimento da missão. Com funções bem definidas numa guarnição policial, na
qual “o motorista é o motorista, o comandante da viatura é o comandante da
viatura, e o patrulheiro é o patrulheiro”, como afirma o entrevistado, no caso
de redução de três para dois, cabe ao motorista a acumulação de uma dupla
função: motorista e patrulheiro. Significa, então, que, em algum momento da
ocorrência, ele deixa de ser motorista para ser patrulheiro, ao abandonar a
viatura, infringindo a regra, justificada pela necessidade de acompanhar o
comandante na ocorrência, com vistas ao efetivo cumprimento da missão.
Equacionar o alcance
dos objetivos para o efetivo cumprimento da missão e a observação à lei e às
regras institucionais talvez constitua um dos conflitos que mais se evidenciam entre
os policiais militares na sua prática cotidiana de trabalho. Verifica-se, nas
falas dos policiais entrevistados, a compreensão de que há incompatibilidade
entre a norma e a prática, como sugere o relato abaixo:
[...] é dito pra ele [ao policial da linha de frente] que
ele não deve transportar o preso em espaço inadequado, por exemplo, dentro da
viatura. Só que a viatura que é colocada pra ele trabalhar, é uma viatura que
não tem cela. Ele termina tendo que decidir: ou coloca o preso no porta-malas
do carro, que é uma coisa inadmissível, uma coisa que não encontra respaldo na
norma, ou vai se arriscar com ele no banco de trás da viatura. O que vai
acontecer com ele? Ele é cidadão, ele é gente, pessoa, tem medo! E termina,
aqui e acolá, colocando o preso no porta-malas do carro, mesmo sabendo que não
pode, pois foi dito pra ele que não pode. Mas, não foram dadas as condições
para cumprimento da norma. Então, não adianta eu dizer: “Olha, não pode”. E não
ofereço àquele que tem que cumprir a norma as condições necessárias para o
cumprimento dela. Se eu digo que não pode, e o ambiente não demonstra outra
alternativa, você vai praticar a transgressão. Então, eles têm muitos conflitos
com relação a isso aí. Ele está na rua, e não tem colete à prova de bala. Ele
está na rua: “Ah, não! Olha, não usa o armamento como primeira alternativa de
decisão! O armamento é o último!” Mas, ele não recebe um spray de pimenta. Ele
não recebe um armamento não letal ou de menor letalidade. Ou é entregue pra ele
a arma de fogo, ou não é entregue nada. Então, você diz pra ele: “Olha, faz
assim.” Mas, não dá os meios pra ele cumprir. Ele é... Assim, ele sabe que está
errado, mas sabe que tem uma missão a cumprir. Então, é muito conflituoso para
o policial receber a norma e não ter as condições necessárias para cumprir essa
norma. (Major PM com 17 anos na PMPI).
Observa-se que, ao tempo em que
a lei orienta a ação do policial da linha de frente na sua relação com o
público, ela também a restringe, interdita, diz não. Assim, a orientação legal
ocorre, sobretudo, pela negação, revelando que os procedimentos que os
policiais não devem adotar são sempre em maior escala do que os que
efetivamente podem realizar; ou, como diz Muniz (1999, p. 140), “[...] a lista
do que ‘não se pode fazer’ tende a ser sempre superior ao inventário de
procedimentos positivos que atenda às demandas reais do trabalho policial,
orientando de forma pragmática sobre ‘o que’, ‘porque’, ‘como’, ‘onde’ e
‘quando’ fazer.” E, uma vez que as
normas institucionais deixam lagunas, reveladas no “como fazer”, o próprio policial
em ação é que se encarrega de preenchê-las com os meios de que dispõe, pois, como
diz o entrevistado, ele pode até saber “[...] que está errado, mas sabe [também]
que tem uma missão a cumprir”.
No atendimento à
ocorrência, o cumprimento da missão é o objetivo a ser alcançado e o que,
efetivamente, norteia a ação policial-militar, não importando os meios
utilizados no seu cumprimento. E nisto consiste o poder do policial de linha, revelado,
sobretudo, no desenvolvimento de iniciativas proativas que o tornam
proprietário da ação, singularizando-o num modo particular de agir e atuar na
relação com o público. Assim, se por um lado, sofrem a interdição das regras institucionais,
por outro, desenvolvem comportamentos positivos, ainda que nem sempre louváveis,
mas que o levam ao alcance do seu objetivo.
E, da mesma forma
que os policiais rompem as regras em relação aos procedimentos institucionais,
também o fazem em relação ao público com o qual interagem, já que nessa relação
a lei deixa também as suas lacunas, sendo estas, portanto, que tendem a se
constituir como espaços da transgressão e até da ação abusiva e violenta. Logo,
são nas ações diárias de policiamento que os policiais atualizam novas posturas
e adquirem outros saberes que não aqueles exclusivos à cultura organizacional,
fundamentada em procedimento burocrático-legal, mas que emergem diretamente das
circunstâncias que os inserem no momento mesmo da ocorrência, da sua prática
cotidiana. Esses saberes enriquecem o aprendizado policial-militar,
incrementando a cultura policial, já que, como diz Fischer (2007), a cultura
organizacional funciona como um filtro da relação entre as normas e a prática
profissional, de modo que, frente às diretrizes legais, os policiais avaliam a
ordem recebida conforme os parâmetros da sua cultura, e decidem se a acatam ou
não. Uma vez não acatada, tem-se a possibilidade de criação de outros meios
para a resolução da situação.
REFERÊNCIAS
BAYLEY, David H. Padrões
de policiamento: uma análise comparativa internacional. 2. ed. São
Paulo: EdUSP, 2006.
BRETAS, Marcos L. Observações
sobre a falência dos modelos policiais. Tempo Social. Revista de Sociologia
da USP, v. 9, n. 1, p. 79-94, mai 1997.
BRICEÑO-LEÓN, Roberto; PIQUET
CARNEIRO, Leandro; MIGUEL CRUZ, José. O apoio dos cidadãos à ação extrajudicial
da polícia no Brasil, em El Salvador e na Venezuela. PANDOLFI, Dulce C. et. al.
(Org). Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: EdFGV, 1999. p.
117-127.
CERTEAU, Michel de. A
invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 13. ed. Petrópolis (RJ):
Vozes, 2007.
FISCHER, Rosa M. O círculo do
poder: as práticas invisíveis de sujeição nas organizações complexas. In:
FLEURY, Maria T. L; FISCHER, Rosa M. (Coord.). Cultura e poder nas organizações.
2. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 65-88.
FOUCAULT, Michel. Microfísica
do poder. 23. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2007a.
MAIA, Clarissa N. Policiados: controle e disciplina
das classes populares na cidade do Recife: 1865-1915. Tese de Doutorado.
Recife: UFPE, 2001.
MONJARDET, Dominique. O que faz a polícia: sociologia da
Força Pública. São Paulo: EdUSP, 2003.
MUNIZ, Jacqueline de O. ‘Ser
policial é, sobretudo, uma razão de ser’: cultura e cotidiano da
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro:
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1999. Disponível em:
<http://www.ucamcesec. com.br/pb_txt_dwn.php> Acesso em: 9 nov. 2008.
PIAUÍ (Estado). Lei nº 3.808, de
16 de julho de 1981. Dispõe sobre o Estatuto dos Policiais Militares do Estado
do Piauí... [Teresina]: PMPI, 1981. Disponível em: <http:// www.pm.pi.gov.br/publicacoes/leis/estatutopmpi.pdf> Acesso
em: 3 jan. 2008.
* Este artigo é
parte da dissertação de mestrado “A polícia militar entre a prevenção e o
atendimento à ocorrência: significados e nexos da prática de policiamento
ostensivo em Teresina” apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas
Públicas da Universidade Federal do Piauí sob a orientação da professora Drª
Antônia Jesuíta de Lima. Teresina: 2009.
** Mestre em Políticas Públicas pela Universidade
Federal do Piauí (2009) e Licenciada em Filosofia (1998) pela mesma
universidade.
***
Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(1999) e professora aposentada da Universidade Federal do Piauí (2019).
[1] As
transgressões e punições disciplinares são regulamentadas no Decreto nº 3.548,
de 31 de janeiro de 1980, que dispõe sobre o Regulamento Disciplinar da Polícia
Militar do Piauí. Neste, são especificadas e classificadas as transgressões e
estabelecidas as normas referentes à amplitude e aplicação das penas
disciplinares, inclusive com detenção ou prisão do policial por até trinta dias
(PIAUÍ, 1981).
Neste conteúdo, relato a evolução dos transtornos em minha mãe. Ações repetitivas
entre louvores e orações revelando a sua religiosidade. Veja! |
Minha mãe estava
com oitenta e nove anos quando começamos a observar ações repetitivas em seu
comportamento. Estava depressiva quando começou a se comportar de forma estranha
em suas ações habituais. Começamos a observar suas mudanças ao se levantar pela
manhã, ao se preparar para dormir à noite, ao terminar o seu café da manhã, e
durante todo o dia ao permanecer sentada na sua cadeira de descanso. Em todos
esses momentos ela já não era a mesma. Inclusive, à medida que evoluíam as
alterações aumentava a recusa alimentar. Caso queira saber como ocorriam esses transtornos que só depois saberíamos se tratar do Alzheimer se instalando clique aqui.
Neste conteúdo, veremos
a continuidade dessas alterações noutras ações comuns de minha mãe: suas
práticas religiosas. Ela era muito católica e de muita fé. Sempre o
fora. Talvez por isso, os transtornos tenham evoluído também no âmbito da sua
religiosidade. Era bastante dada a leituras associadas à sua fé. Por isso,
carreado na leitura da Bíblia seguia um universo de orações, santas e santos
aos quais e às quais se devotava. Eram então
próprios de seu mundo os temas relativos ao Sagrado.
Ela sempre fazia orações ao acordar, depois das refeições e à noite antes de dormir. Mas as orações da manhã se tornaram cada vez mais prolongadas. E suas leituras bíblicas se estendiam cada vez mais num tempo cada vez maior. É sobre essas novas alterações no comportamento de minha mãe a que se refere este conteúdo. Meus relatos da forma como se manifestaram e a minha pouca ação frente a questões originalmente tão desconhecidas para mim.
Como disse na seção anterior, minha mãe era muito católica. Esse fato tornava nossa
casa cheia de imagens de santos e santas distribuídos e distribuídas nas
paredes das salas. No quarto dela, um altar com muitas imagens. Era hábito seu concluir suas orações da manhã
junto às imagens dos santos no altar de seu quarto e nas paredes da sala. Em
frente às imagens se benzia e as louvava, sempre na mais profunda contrição. Foi
nesse cenário que se manifestaram novas alterações em seu comportamento. Não
pelos santos e santas, mas pelo transtorno que a acometia e que a levava a
ações repetitivas.
O que eu via então como certo e natural em suas
orações, passei a estranhar e até vê como problema quando passaram a ser mais
demoradas, mais excessivas. Se antes era apenas tocar a imagem, louvar e logo
sair, passou a ser um deter-se nela por longos minutos. Elevava as mãos em
louvores e seus lábios em constante movimento como a rezar sucessivamente. Assim
seguia de imagem a imagem de uma parede a outra.
Os dias passavam e parecia que ela já
não fazia as orações. Não como outrora. Mas mantinha a peregrinação junto às
imagens. Essa ação se tornava igualmente repetitiva, cada vez mais prolongada e
seguida de outra: o caminhar descalça por toda a casa parando nas portas e
janelas. Nesses lugares, permanecia igualmente por longo tempo com as mãos erguidas em gestos de louvor e oração. Não parava de balbuciar
palavras que, embora inaudíveis, sugeriam sintonia com suas orações. Nesses
momentos, não aceitava ser interrompida. Mas concluída aquela ação, seu
humor permanecia alterado. Seu semblante continuava rígido. Não aceitava
comunicação alguma e rejeitava com agressividade qualquer sugestão que a
contrariasse.
O silêncio parecia sua única necessidade. Tanto que ao permanecer em seu descanso era no mais absoluto silêncio e não aceitava barulhos por mais leves que fossem. O uso de calçados dentro de casa era uma ofensa grave para ela. O ruído de conversas, uma agressão a seus ouvidos. Era como se a casa fosse um ambiente sagrado, que nada o poderia imolar. No controle de sons e ruídos, eu e minha irmã chegamos a nos comunicar por gestos; minha irmã, a andar descalça. Tudo para não a contrariar e não a aborrecer ainda mais. Eu resisti a tirar os calçados, mas tive que enfrentar sistematicamente a dureza de seu olhar e sua repreensão sempre que eu chegava até ela ou simplesmente passava de largo.
Era hábito de minha mãe depois do café da manhã assistir programas
religiosas na televisão e depois lê livros com textos bíblicos. Geralmente, textos
com relatos e ilustrações sobre a vida de Jesus. Era comum vê-la nessa leitura
em determinadas horas da manhã.
Naquele dia, sua leitura me chamou atenção. Observei que ela folheava demais o livro como
se procurasse algo entre as páginas. Era o livro sobre a vida de Jesus do qual
muito ela gostava. Mas não parecia se fixar à leitura de nenhuma das páginas.
Então tentei ajudá-la. Ela recusou minha ajuda dizendo que tinha que ser
daquele jeito. Percebi um certo jeito aborrecido de me falar. O jeito que eu já
vira noutras ações dela. Então entendi que ela estava sob o mesmo transtorno
que a levava a arrumar incessantemente o lençol sobre a cama e sobre o seu
próprio corpo.
Então
passei a acompanhar de longe aquela ação que se prolongou até pelo meio da
tarde. Só então a consegui tirar daquela cadeira, daquele folhear sem fim. Não
porque eu tivesse conseguido por meus próprios meios. Mas porque o transtorno a
libertara. Era assim que eu via. Então ela retomou a consciência de si por
aquele resto de dia. Então pode se alimentar, o que não o fazia sob transtorno.
No
dia seguinte, aquela ação se repetiu. Novamente estava ela na mesma cadeira com
a Bíblia sobre as pernas numa folheação ininterrupta. Passava página a página
indo e voltando sucessivas vezes. Só o silêncio a acompanhava naquele folhear. Não
aceitava minha intervenção. Afirmava que tinha que ser daquele jeito e que eu
não sabia. A forma como falava sugeria que se tratava de alguma promessa que
ela teria que cumprir. Por isso “tem que ser assim” como ela dizia. Nessa hora
fixava o olhar em mim e falava com tanta convicção que me fazia duvidar de
minha intervenção. Então eu recuava e guardava o meu estranhamento.
A noite daquele dia já avançava muito sem que eu conseguisse tirá-la da sua ação. Já passava da hora de dormir e ela no seu folhear a Bíblia. Deitada numa rede ao lado da poltrona onde ela estava, adormeci sem me dá conta. Ao acordar a altas horas da noite, ela havia adormecido. Seu jeito descomposto e a Bíblia largada em sua mão revelavam que o sono a vencera e a tirara daquela ação repetitiva à sua revelia. Só então a levei para a cama e a acomodei. Ela havia passado aquele dia apenas com o café da manhã. A situação se agravava. Foi então que busquei ajuda.
Orientada
por uma psicóloga, procurei um psiquiatra que me alertou para a possibilidade
do Alzheimer. Poderia ser o Alzheimer se instalando nela, sugeriu ele. Mas fui também a um padre, pois a questão religiosa embutida em
suas ações tinha um quê de sagrado tão forte que me imobilizava. Era o que mais
me intrigava nas ações dela, a que mais me deixava sem respostas. Eu realmente ficava com medo de intervir em ritos tão caros a ela e tão incompreensíveis a mim.
Eu
não era de religião, apesar de nascida e crescida sob a orientação católica. Mas respeitava a religiosidade dela. Sabia de suas
crenças e de seus apegos. Nas recusas às nossas
intervenções, ela dizia que pagava promessa e que a ação tinha que ser daquela
forma. Isso nos freava sobremaneira, a mim e à minha irmã, com quem dividia os
cuidados. Estávamos diante de questões incompreensíveis para nós. Vai que numa
possível intervenção, nós a fazíamos “quebrar” a sua promessa? O seu sagrado?
Junto ao padre eu buscava compreender aquele
comportamento no aspecto religioso. Mas ele sugeriu que se eu o quisesse
compreender teria que entrar no mundo dela, vivenciar aquela realidade. Então encerrei
o assunto por acreditar que seria percorrer um caminho longo demais para algo
que exigia pressa. Então procurei um geriatra e lhe relatei a situação. De posse das informações,
prescreveu uma medicação indicada para Alzheimer.
No
entanto, não conseguimos administrar a medicação. Naquele dia, ela não mais aceitou nenhum alimento. Parecia em surto. Nesse estado, ela caiu. Então recorremos à urgência hospitalar. Ao retornar
medicada do hospital, estava controlada e assim retomamos os cuidados com ela. Foi
então que vi sentido na sugestão do padre, pois logo percebi que os cuidados
com ela exigiam mais do que o puramente racional, mais do que o saber da lógica
humana. Era preciso percorrer os caminhos de Deus. Assim foi.
A
religiosidade de minha mãe foi um dos aspectos mais marcantes na evolução dos
transtornos que a acometiam. Em todos os momentos, era o mundo do eterno ou dos
santos que parecia ser mais significativo para ela. Inclusive, o mundo ao qual
ela recorria e buscava apoio quando perdia suas referências; quando entrou em
surto e nos deixou atônitas e meio sem rumo.
Parecíamos
tão desorientadas quanto ela, pelas próprias circunstâncias de vê-la naquele estado
quanto pelas respostas que tínhamos que buscar e as decisões a tomar. Ainda bem
que Deus estava com ela e a fez cair sem agravos. Bendita queda! Pois foi a
partir dela que as coisas tomaram o rumo adequado. Foi a partir dela que encontramos
o nosso rumo.
Caso queira saber mais sobre essa história de cuidados com amor, veja o próximo conteúdo. Aguarde!
A você, meus agradecimentos
Deus
esteja com você!
Sônia
Ferreira
Teresina, 21
de maio de 2021.
Você terminou de conhecer
mais um conteúdo do Caminho Cuidados com Amor.
Espero que tenha gostado e acompanhe os conteúdos
da sequência.
Felina Marruá: a guia dos conteúdos do caminho Cuidados com Amor do blog A Doideragem. |
Projeto Social ComCarinho Cuidados com a Pessoa Idosa Para download clique na imagem Projeto completo para implementar ou sugestivo para no...