RESENHA ACADÊMICA*
Sônia
Maria Ferreira Lima**
ÉTICA DO TRABALHO
A VIDA FAMILIAR NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL
COLBARI, Antônia L. Ética do Trabalho: a vida familiar na construção da identidade profissional. São Paulo: Letras & Letras, 1995, 278 p.
Fruto de um importante trabalho de pesquisa
sobre o mundo do trabalho no Brasil e a consequente organização sindical, Ética
do Trabalho se refere a várias situações que envolvem o trabalhador de
fábrica no país, inclusive retratando a formação da psicologia e das motivações
concretas do operário nessa sua condição de trabalhador brasileiro.
Foi esse o tema que fundamentou a tese de
doutorado de Antônia Colbari, autora do livro, cientista social com mestrado
pela UNICAMP e doutorado em Sociologia pelo IUPERJ. Na sua pesquisa, Antônia
Colbari organizou vasta documentação sobre o processo de eleição nos concursos
para operários-padrão. Essa documentação foi seu ponto de partida para a defesa
de sua tese, cuja reelaboração originou Ética do Trabalho, obra apresentada
por Luís Werneck Viana.
Ao apresentar essa obra, Viana enaltece a originalidade da
autora na abordagem do tema e na sua capacidade de persuasão em defendê-lo.
Exalta ainda a importância dessa produção para a Universidade Brasileira, pela
oportunidade de enriquecer o seu acervo bibliográfico com esse importante produto
sobre o movimento operário.
Nas
suas 278 páginas bem utilizadas porque bastante completas, o livro de Antônia
Colbari mostra o trabalhador inserido na fábrica, no sindicato, na comunidade e
na família. Inclusive, destaca a vida familiar como uma dimensão altamente
valorizada nos concursos para eleição de operários-padrão. São esses aspectos
da vida do trabalhador que a autora analisa na composição da sua tese. Em sua
análise, ela considera as atitudes dos operários a partir de determinações
derivadas tanto do seu ingresso na vida pública quanto na sua vida privada.
A
base dessa análise está nos vários depoimentos dos trabalhadores, nos relatos
dos organizadores da Campanha Operário-Padrão e na extensa literatura de teóricos
consagrados no tema de estudo da autora. Esses conhecimentos permeiam todo o
livro, o que o torna uma rica fonte de informações sobre o trabalho no Brasil,
especialmente acerca do trabalhador na sua relação com a fábrica e com a
família inserida nessa relação. Além do
mais, essa análise demonstra a capacidade da autora de articular ideias de diferentes
visões e sintetizá-las de modo a lhes conferir a unidade necessária à
compreensão do leitor.
Assim
é Ética
do Trabalho, uma síntese bem articulada das ideias da autora sobre o
operário brasileiro na sua vivência mais imediata - a fábrica - que, de tão
familiar, termina como a extensão de si mesmo. De linguagem fácil, tópicos bem
estruturados e uma sequência linear, dispensa ao leitor e à leitora qualquer
conhecimento prévio para o entender.
Por tudo isso, Ética
do Trabalho é um convite à boa leitura, não apenas pela
forma clara e objetiva com que a autora expõe suas ideias, seu conteúdo, mas
especialmente pela importância em apresentar um tema tão atual.
A obra se divide em duas partes: a primeira, com
três capítulos; a segunda, com quatro. Logo na Introdução, a autora dá uma ideia
acerca da disposição técnica de todo o seu livro. Conteúdo adequadamente
dividido; parágrafos curtos, parecendo recortes e passando a impressão de
fragmentação, mas completos na sua significação. Começa apresentando o problema
sobre o qual desenvolveu o seu trabalho de pesquisa. Apresenta a hipótese
central da sua investigação e os pontos nos quais centralizou a sua atenção.
Contextualiza o tema, reportando-se a vários acontecimentos que marcavam o
cenário de realização do seu estudo.
Assim,
apresenta grande parte do conhecimento produzido no universo do trabalho na
sociedade brasileira, subsídios para a sua abordagem. Relata o modo como se
realizou a pesquisa baseada em extensa documentação sobre esse universo, o que
lhe possibilitou o acúmulo de informações sobre a Campanha Operário-Padrão.
Essa campanha, considerada pela autora como recurso necessário a uma definição
mais precisa do perfil do operário-padrão nos estados brasileiros.
Com
esses achados, a autora expõe a temática central do seu livro: o resgate da
adesão ao trabalho na sociedade brasileira. Assim, refere-se aos parâmetros pelos
quais se resgatam a constituição do mercado de trabalho urbano-industrial e a
constituição do trabalhador de fábrica a partir da constituição de uma
ideologia do trabalho que assegure a legitimidade do mercado de trabalho e das
relações sociais a ele inerentes.
Na
primeira parte do livro, Antônia Colbari mostra com nitidez o processo de
constituição da ideologia do trabalho no Brasil. Uma ideologia que enfatiza o
suporte familiar da moral do trabalho e o alinhamento entre família e trabalho
na motivação para o engajamento do trabalhador no processo produtivo. A
preocupação central da autora nesse momento, é resgatar o processo de
constituição dessa ideologia. Processo esse iniciado com a formação de um
referencial ideológico desencadeado em várias instâncias sociais e finalizado
com a Campanha Operário-Padrão que, naquele momento, denominava-se Campanha
Operário-Brasil. O referencial ideológico criado é que serviria de base para se
preparar a constituição física e moral do trabalhador brasileiro.
O
primeiro capítulo destaca o papel central da família na definição dos
parâmetros organizadores do mercado de trabalho, o processo de elaboração de
uma moral do trabalho, as representações do trabalho sob o estigma das relações
escravistas e os esforços da sociedade para organizar esse mercado e promover o
resgate moral do trabalho e do trabalhador.
A autora revela que os debates sobre a emancipação do trabalho eram
carregados de ideologias que defendiam a liberdade de trabalho e de pensamento,
mas o que visavam mesmo era integrar os operários à ordem vigente.
No segundo capítulo, Antônia Colbari aborda a
consolidação da ideologia do trabalho. Destaca a concepção ética do trabalho
baseada na moralidade familiar e no empenho do empresariado em reforçar as
tentativas camufladas de constituição profissional e ideológica do trabalhador
de fábrica, suscitando no pensamento brasileiro uma concepção favorável do
trabalho. Ao relatar essas tentativas de se resgatar a moral do trabalho, a
autora demonstra como surgiu a influência do Estado sobre a sociedade, com os
mecanismos de controle para disciplinar o trabalhador na sua formação de
cidadão. Demonstra ainda como o Estado
Novo incorporou o ethos disciplinador
do industrialismo, reformulando os valores e tradições da cultura operária e
reestruturando identidades sociais constituídas para atender à nova ordem
política, econômica e social.
No
terceiro capítulo, a autora trata da Campanha Operário-Padrão propriamente
dita. Faz um breve histórico sobre essa campanha, apresentando algumas
considerações sobre a sua dinâmica: a origem, os requisitos do trabalhador para
concorrer ao título, o processo de seleção, a importância que o operário dá ao
título e, por fim, o perfil do operário-padrão. Esse perfil é baseado nos
depoimentos dos operários portadores ou não do título e dos organizadores da campanha.
É nessa parte do livro que se verifica o maior número de depoimentos que, a
despeito das supressões, permitem ao leitor maior aproximação com a história de
cada operário pelo seu próprio relato.
A
segunda parte de Ética do Trabalho destaca a atenção da autora em
situações que lhe permitem desmontar as peças de uma construção cultural e
ideológica em torno da imagem do operário-padrão cujo produto é o trabalhador
exemplar. Para essa desmontagem, ela se vale da composição da imagem do
operário-padrão a partir de depoimentos onde o trabalhador mostra sua vida no
trabalho e na família e nesses contextos evidenciam os seus valores.
Essa
desmontagem permanece fiel à ideia matriz da investigação da autora: a ideia de
que o operário-padrão resulta de um processo socializador, sustentado por um
referencial cultural que elege a condição de provedor da família como suporte
de uma ideologia que se esforça para exaltar e legitimar o trabalho, estimular
atitudes, valores e representações favoráveis ao trabalho industrial.
Assim, o primeiro capítulo dessa parte destaca
a família como suporte material e ideológico da atividade produtiva e como essa
situação se apresenta nas representações do operário. Baseando-se em seus
depoimentos, a autora sugere que as referências morais acerca do trabalho e da
família é que determinam a personalidade dos componentes masculinos do grupo
familiar; que o trabalho é recomendado como medida profilática contra a
marginalidade; que a condição de pobreza é uma referência simbólica
determinante e alicerçada em forte substrato material; que é esse substrato que
marca a socialização e o percurso familiar e profissional dos operários. Sugere
ainda que a exaltação do papel da mulher na reprodução física e ideológica do
grupo familiar é o recurso retórico e o artefato ideológico utilizado para
justificar sua permanência no lar e seu afastamento do mercado de trabalho. Enfim,
o universo familiar é o eixo que estrutura ao trabalhador a condição de
provedor da família; logo, sua fonte de motivação para o trabalho.
No
segundo capítulo, Antônia Colbari trata da inserção do operário na vida
pública. Mostra o operário enquanto cidadão participante de práticas coletivas,
de atividades comunitárias. Revela que a religião com suas funções
reintegrativa e socializadora estimula condutas morais favoráveis ao ethos do trabalho. Isto porque
religiosidade e moralidade estão presentes na conformação de ideais tão
valorizados na família, no trabalho e na comunidade. Retrata o surgimento dos
movimentos comunitários, que se estabelecem em bases sólidas; e o surgimento dos
sindicatos, que encontram dificuldades em se estabelecer. Entre essas
dificuldades, incluem-se resistências e justificativas de muitos operários em
integrar ou não diretórios de sindicatos; as críticas que atingem sindicatos e
sindicalistas; e ainda a visão de operários que defendem sindicatos legítimos
voltados efetivamente para a causa dos trabalhadores. A autora considera que a
participação sindical é secundária em relação à atração às atividades
comunitárias, de participação inspirada mais por sentimentos ético e religioso
do que por razões políticas.
No
terceiro capítulo, a autora aprofunda aspectos relativos à inserção do operário
no mundo do trabalho, destacando representações formuladas a partir de sua
condição de produtor e de sua identidade como profissional de fábrica. Inclusive,
inicia esse capítulo retomando os anteriores, chamando atenção do leitor para o
assunto já abordado. A partir daí e se baseando em fatos ilustrativos da vida
profissional do operário, ela analisa os depoimentos e conclui que a vinda do
trabalhador para a cidade possibilita o seu ingresso no SENAI ou nas escolas
técnicas, caminhos esses que favorecem a definição de uma carreira
profissional. Todavia, reconhece que esta não é uma regra geral, pois muitas
vezes o meio mais comum é a indicação de um parente ou amigo; e que a maneira
como o indivíduo manipula influências econômicas e sociais podem também definir
a sua opção por determinado tipo de trabalho. Sugere ainda que a qualificação
profissional não se restringe à assimilação de conteúdos técnicos, mas envolve
conteúdo normativo e ideológico ligado à atividade produtiva e à vivência
social no mundo urbano-industrial.
O
quarto capítulo apresenta uma síntese que recupera a visão de mundo do
operário-padrão na confluência de três eixos: família, trabalho e comunidade. A
autora demonstra a similaridade nos percursos familiar e profissional do
operário-padrão; percursos esses orientados pela perspectiva de afirmação da
condição de provedor exclusivo da família e de realização de um projeto de
ascensão social. Segundo ela, essas semelhanças definem uma concepção do
trabalho e um visão de mundo cujos
elementos mais evidentes são a ideologia do êxito individual, a crença na
vontade como fonte do sucesso e a forte integração ao universo do trabalho nas
dimensões técnico-econômica e ideológica. Essa visão de mundo proporcionada
pela ideologia do trabalho suscita ao mesmo tempo o sentimento de dignidade do
trabalho baseado em razões morais, religiosas e cívicas. No entanto, a autora
afirma ter encontrado nos depoimentos dos operários contradições de ordem
psicológica entre o desejo de autonomia e independência individual e o desejo
de proteção e segurança no emprego, o que reforça sua argumentação de que a
visão de mundo do trabalhador está marcada pela influência das experiências
vividas em contextos diversos. Afirma ainda que nos discursos dos operários não
há indícios de questionamentos sobre a divisão do trabalho, a organização do
processo produtivo e as relações de propriedade. Todavia, o operário valoriza o
trabalho como direito ao suprimento de suas necessidades básicas e de condições
dignas de vida, sendo igualmente marcante a valorização da independência no
exercício profissional e da realização de algo que transcenda a sua sujeição à
necessidade de sobrevivência.
Nas
últimas páginas do livro, a autora apresenta as suas considerações finais,
sintetizando ainda mais as conclusões às quais chegou depois de mais de dez
anos de estudos e pesquisas no desenvolvimento do seu projeto. Afirma que na consolidação desse projeto se
cruzaram elementos de várias tradições culturais: os estigmas negativos
herdados do escravismo, a espontaneidade da cultura popular, as experiências
artesanal e política de anarquistas e socialistas, o pensamento tecnocrático e
as ideologias empresariais, além de fatores outros que também deixaram a sua
marca na constituição da classe operária e na sedimentação de uma ideologia
legitimadora do trabalho na sociedade brasileira. Entre esses fatores, ela cita
o próprio desenvolvimento capitalista, a conciliação entre as elites na
constituição de um padrão de hegemonia social e todo o quadro institucional inserido
na normatização do mercado de trabalho.
Por
fim, para concluir a defesa de sua tese, a autora se reporta às origens de
questões relativas à dupla moral do casamento, ao paternalismo na política, aos
papéis sociais do homem e da mulher e à determinação das profissões para cada
indivíduo, permitindo ao leitor uma melhor compreensão acerca da formação ética
da sociedade brasileira.
Por
tudo o que foi exposto, conclui-se que a temática e as questões apresentadas
por Antônia Colbari são bastante comprometidas com a situação atual do país,
razão por que sua obra Ética do Trabalho se constitui
referência necessária para a compreensão dos problemas que envolvem o
trabalhador brasileiro e as razões que determinam o comportamento do mercado de
trabalho em nosso país em diferentes épocas.
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Resenha apresentada originalmente à disciplina Ética II do Curso de
Licenciatura em Filosofia da Universidade Federal do Piauí ministrada pelo
professor Ms. Helder Buenos Aires visando à avaliação de desempenho na
disciplina. Teresina: 1998.
** Licenciada em Filosofia pela Universidade
Federal do Piauí (1998) e Mestre em Políticas Públicas pela mesma Universidade.
Teresina: 2009. E-mail: soniaferreira.smf@gmail.com
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