sábado, 8 de maio de 2021

Resenha Acadêmica: Ética do Trabalho: a vida familiar na construção da identidade profissional



RESENHA ACADÊMICA*

 

Sônia Maria Ferreira Lima**

 

ÉTICA DO TRABALHO

A VIDA FAMILIAR NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL

 

COLBARI, Antônia L. Ética do Trabalho: a vida familiar na construção da identidade profissional. São Paulo: Letras & Letras, 1995, 278 p. 

 

Fruto de um importante trabalho de pesquisa sobre o mundo do trabalho no Brasil e a consequente organização sindical, Ética do Trabalho se refere a várias situações que envolvem o trabalhador de fábrica no país, inclusive retratando a formação da psicologia e das motivações concretas do operário nessa sua condição de trabalhador brasileiro.

Foi esse o tema que fundamentou a tese de doutorado de Antônia Colbari, autora do livro, cientista social com mestrado pela UNICAMP e doutorado em Sociologia pelo IUPERJ. Na sua pesquisa, Antônia Colbari organizou vasta documentação sobre o processo de eleição nos concursos para operários-padrão. Essa documentação foi seu ponto de partida para a defesa de sua tese, cuja reelaboração originou Ética do Trabalho, obra apresentada por Luís Werneck Viana.

Ao apresentar essa obra, Viana enaltece a originalidade da autora na abordagem do tema e na sua capacidade de persuasão em defendê-lo. Exalta ainda a importância dessa produção para a Universidade Brasileira, pela oportunidade de enriquecer o seu acervo bibliográfico com esse importante produto sobre o movimento operário.

Nas suas 278 páginas bem utilizadas porque bastante completas, o livro de Antônia Colbari mostra o trabalhador inserido na fábrica, no sindicato, na comunidade e na família. Inclusive, destaca a vida familiar como uma dimensão altamente valorizada nos concursos para eleição de operários-padrão. São esses aspectos da vida do trabalhador que a autora analisa na composição da sua tese. Em sua análise, ela considera as atitudes dos operários a partir de determinações derivadas tanto do seu ingresso na vida pública quanto na sua vida privada.

A base dessa análise está nos vários depoimentos dos trabalhadores, nos relatos dos organizadores da Campanha Operário-Padrão e na extensa literatura de teóricos consagrados no tema de estudo da autora. Esses conhecimentos permeiam todo o livro, o que o torna uma rica fonte de informações sobre o trabalho no Brasil, especialmente acerca do trabalhador na sua relação com a fábrica e com a família inserida nessa relação.  Além do mais, essa análise demonstra a capacidade da autora de articular ideias de diferentes visões e sintetizá-las de modo a lhes conferir a unidade necessária à compreensão do leitor.

Assim é Ética do Trabalho, uma síntese bem articulada das ideias da autora sobre o operário brasileiro na sua vivência mais imediata - a fábrica - que, de tão familiar, termina como a extensão de si mesmo. De linguagem fácil, tópicos bem estruturados e uma sequência linear, dispensa ao leitor e à leitora qualquer conhecimento prévio para o entender.

Por tudo isso, Ética do Trabalho é um convite à boa leitura, não apenas pela forma clara e objetiva com que a autora expõe suas ideias, seu conteúdo, mas especialmente pela importância em apresentar um tema tão atual.

 A obra se divide em duas partes: a primeira, com três capítulos; a segunda, com quatro. Logo na Introdução, a autora dá uma ideia acerca da disposição técnica de todo o seu livro. Conteúdo adequadamente dividido; parágrafos curtos, parecendo recortes e passando a impressão de fragmentação, mas completos na sua significação. Começa apresentando o problema sobre o qual desenvolveu o seu trabalho de pesquisa. Apresenta a hipótese central da sua investigação e os pontos nos quais centralizou a sua atenção. Contextualiza o tema, reportando-se a vários acontecimentos que marcavam o cenário de realização do seu estudo.

Assim, apresenta grande parte do conhecimento produzido no universo do trabalho na sociedade brasileira, subsídios para a sua abordagem. Relata o modo como se realizou a pesquisa baseada em extensa documentação sobre esse universo, o que lhe possibilitou o acúmulo de informações sobre a Campanha Operário-Padrão. Essa campanha, considerada pela autora como recurso necessário a uma definição mais precisa do perfil do operário-padrão nos estados brasileiros. 

Com esses achados, a autora expõe a temática central do seu livro: o resgate da adesão ao trabalho na sociedade brasileira. Assim, refere-se aos parâmetros pelos quais se resgatam a constituição do mercado de trabalho urbano-industrial e a constituição do trabalhador de fábrica a partir da constituição de uma ideologia do trabalho que assegure a legitimidade do mercado de trabalho e das relações sociais a ele inerentes.

Na primeira parte do livro, Antônia Colbari mostra com nitidez o processo de constituição da ideologia do trabalho no Brasil. Uma ideologia que enfatiza o suporte familiar da moral do trabalho e o alinhamento entre família e trabalho na motivação para o engajamento do trabalhador no processo produtivo. A preocupação central da autora nesse momento, é resgatar o processo de constituição dessa ideologia. Processo esse iniciado com a formação de um referencial ideológico desencadeado em várias instâncias sociais e finalizado com a Campanha Operário-Padrão que, naquele momento, denominava-se Campanha Operário-Brasil. O referencial ideológico criado é que serviria de base para se preparar a constituição física e moral do trabalhador brasileiro.

O primeiro capítulo destaca o papel central da família na definição dos parâmetros organizadores do mercado de trabalho, o processo de elaboração de uma moral do trabalho, as representações do trabalho sob o estigma das relações escravistas e os esforços da sociedade para organizar esse mercado e promover o resgate moral do trabalho e do trabalhador.  A autora revela que os debates sobre a emancipação do trabalho eram carregados de ideologias que defendiam a liberdade de trabalho e de pensamento, mas o que visavam mesmo era integrar os operários à ordem vigente.

 No segundo capítulo, Antônia Colbari aborda a consolidação da ideologia do trabalho. Destaca a concepção ética do trabalho baseada na moralidade familiar e no empenho do empresariado em reforçar as tentativas camufladas de constituição profissional e ideológica do trabalhador de fábrica, suscitando no pensamento brasileiro uma concepção favorável do trabalho. Ao relatar essas tentativas de se resgatar a moral do trabalho, a autora demonstra como surgiu a influência do Estado sobre a sociedade, com os mecanismos de controle para disciplinar o trabalhador na sua formação de cidadão.  Demonstra ainda como o Estado Novo incorporou o ethos disciplinador do industrialismo, reformulando os valores e tradições da cultura operária e reestruturando identidades sociais constituídas para atender à nova ordem política, econômica e social.

No terceiro capítulo, a autora trata da Campanha Operário-Padrão propriamente dita. Faz um breve histórico sobre essa campanha, apresentando algumas considerações sobre a sua dinâmica: a origem, os requisitos do trabalhador para concorrer ao título, o processo de seleção, a importância que o operário dá ao título e, por fim, o perfil do operário-padrão. Esse perfil é baseado nos depoimentos dos operários portadores ou não do título e dos organizadores da campanha. É nessa parte do livro que se verifica o maior número de depoimentos que, a despeito das supressões, permitem ao leitor maior aproximação com a história de cada operário pelo seu próprio relato.

A segunda parte de Ética do Trabalho destaca a atenção da autora em situações que lhe permitem desmontar as peças de uma construção cultural e ideológica em torno da imagem do operário-padrão cujo produto é o trabalhador exemplar. Para essa desmontagem, ela se vale da composição da imagem do operário-padrão a partir de depoimentos onde o trabalhador mostra sua vida no trabalho e na família e nesses contextos evidenciam os seus valores.

Essa desmontagem permanece fiel à ideia matriz da investigação da autora: a ideia de que o operário-padrão resulta de um processo socializador, sustentado por um referencial cultural que elege a condição de provedor da família como suporte de uma ideologia que se esforça para exaltar e legitimar o trabalho, estimular atitudes, valores e representações favoráveis ao trabalho industrial.

 Assim, o primeiro capítulo dessa parte destaca a família como suporte material e ideológico da atividade produtiva e como essa situação se apresenta nas representações do operário. Baseando-se em seus depoimentos, a autora sugere que as referências morais acerca do trabalho e da família é que determinam a personalidade dos componentes masculinos do grupo familiar; que o trabalho é recomendado como medida profilática contra a marginalidade; que a condição de pobreza é uma referência simbólica determinante e alicerçada em forte substrato material; que é esse substrato que marca a socialização e o percurso familiar e profissional dos operários. Sugere ainda que a exaltação do papel da mulher na reprodução física e ideológica do grupo familiar é o recurso retórico e o artefato ideológico utilizado para justificar sua permanência no lar e seu afastamento do mercado de trabalho. Enfim, o universo familiar é o eixo que estrutura ao trabalhador a condição de provedor da família; logo, sua fonte de motivação para o trabalho.

 No segundo capítulo, Antônia Colbari trata da inserção do operário na vida pública. Mostra o operário enquanto cidadão participante de práticas coletivas, de atividades comunitárias. Revela que a religião com suas funções reintegrativa e socializadora estimula condutas morais favoráveis ao ethos do trabalho. Isto porque religiosidade e moralidade estão presentes na conformação de ideais tão valorizados na família, no trabalho e na comunidade. Retrata o surgimento dos movimentos comunitários, que se estabelecem em bases sólidas; e o surgimento dos sindicatos, que encontram dificuldades em se estabelecer. Entre essas dificuldades, incluem-se resistências e justificativas de muitos operários em integrar ou não diretórios de sindicatos; as críticas que atingem sindicatos e sindicalistas; e ainda a visão de operários que defendem sindicatos legítimos voltados efetivamente para a causa dos trabalhadores. A autora considera que a participação sindical é secundária em relação à atração às atividades comunitárias, de participação inspirada mais por sentimentos ético e religioso do que por razões políticas.

No terceiro capítulo, a autora aprofunda aspectos relativos à inserção do operário no mundo do trabalho, destacando representações formuladas a partir de sua condição de produtor e de sua identidade como profissional de fábrica. Inclusive, inicia esse capítulo retomando os anteriores, chamando atenção do leitor para o assunto já abordado. A partir daí e se baseando em fatos ilustrativos da vida profissional do operário, ela analisa os depoimentos e conclui que a vinda do trabalhador para a cidade possibilita o seu ingresso no SENAI ou nas escolas técnicas, caminhos esses que favorecem a definição de uma carreira profissional. Todavia, reconhece que esta não é uma regra geral, pois muitas vezes o meio mais comum é a indicação de um parente ou amigo; e que a maneira como o indivíduo manipula influências econômicas e sociais podem também definir a sua opção por determinado tipo de trabalho. Sugere ainda que a qualificação profissional não se restringe à assimilação de conteúdos técnicos, mas envolve conteúdo normativo e ideológico ligado à atividade produtiva e à vivência social no mundo urbano-industrial.

O quarto capítulo apresenta uma síntese que recupera a visão de mundo do operário-padrão na confluência de três eixos: família, trabalho e comunidade. A autora demonstra a similaridade nos percursos familiar e profissional do operário-padrão; percursos esses orientados pela perspectiva de afirmação da condição de provedor exclusivo da família e de realização de um projeto de ascensão social. Segundo ela, essas semelhanças definem uma concepção do trabalho e um visão de mundo  cujos elementos mais evidentes são a ideologia do êxito individual, a crença na vontade como fonte do sucesso e a forte integração ao universo do trabalho nas dimensões técnico-econômica e ideológica. Essa visão de mundo proporcionada pela ideologia do trabalho suscita ao mesmo tempo o sentimento de dignidade do trabalho baseado em razões morais, religiosas e cívicas. No entanto, a autora afirma ter encontrado nos depoimentos dos operários contradições de ordem psicológica entre o desejo de autonomia e independência individual e o desejo de proteção e segurança no emprego, o que reforça sua argumentação de que a visão de mundo do trabalhador está marcada pela influência das experiências vividas em contextos diversos. Afirma ainda que nos discursos dos operários não há indícios de questionamentos sobre a divisão do trabalho, a organização do processo produtivo e as relações de propriedade. Todavia, o operário valoriza o trabalho como direito ao suprimento de suas necessidades básicas e de condições dignas de vida, sendo igualmente marcante a valorização da independência no exercício profissional e da realização de algo que transcenda a sua sujeição à necessidade de sobrevivência.

Nas últimas páginas do livro, a autora apresenta as suas considerações finais, sintetizando ainda mais as conclusões às quais chegou depois de mais de dez anos de estudos e pesquisas no desenvolvimento do seu projeto.  Afirma que na consolidação desse projeto se cruzaram elementos de várias tradições culturais: os estigmas negativos herdados do escravismo, a espontaneidade da cultura popular, as experiências artesanal e política de anarquistas e socialistas, o pensamento tecnocrático e as ideologias empresariais, além de fatores outros que também deixaram a sua marca na constituição da classe operária e na sedimentação de uma ideologia legitimadora do trabalho na sociedade brasileira. Entre esses fatores, ela cita o próprio desenvolvimento capitalista, a conciliação entre as elites na constituição de um padrão de hegemonia social e todo o quadro institucional inserido na normatização do mercado de trabalho.

Por fim, para concluir a defesa de sua tese, a autora se reporta às origens de questões relativas à dupla moral do casamento, ao paternalismo na política, aos papéis sociais do homem e da mulher e à determinação das profissões para cada indivíduo, permitindo ao leitor uma melhor compreensão acerca da formação ética da sociedade brasileira.

Por tudo o que foi exposto, conclui-se que a temática e as questões apresentadas por Antônia Colbari são bastante comprometidas com a situação atual do país, razão por que sua obra Ética do Trabalho se constitui referência necessária para a compreensão dos problemas que envolvem o trabalhador brasileiro e as razões que determinam o comportamento do mercado de trabalho em nosso país em diferentes épocas.

 

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* Resenha apresentada originalmente à disciplina Ética II do Curso de Licenciatura em Filosofia da Universidade Federal do Piauí ministrada pelo professor Ms. Helder Buenos Aires visando à avaliação de desempenho na disciplina. Teresina: 1998.

** Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí (1998) e Mestre em Políticas Públicas pela mesma Universidade. Teresina: 2009. E-mail: soniaferreira.smf@gmail.com

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