AS LAGARTAS DENTRO DE MIM
DEUS EM MEU CASULO
O QUINTAL CHEIO DE FLORES E NENHUMA BORBOLETA
O quintal da nossa casa mudava suas folhagens e troncos. Já não
eram os arbustos volumosos de outrora que insistiam em ganhar altura à revelia
dos meus arranques e cortes. Nem os pés de mamona que os sucederam. Aqueles pés
de mamonas que ao longo de dois invernos brotavam do chão a passos largos e
logo alcançavam os ares sob a imponência de suas folhas. Aquelas folhas que o
vento não parava de balançar e rodopiar seus caules de um lado a outro numa
dança de encher os olhos. Era bonito de se vê. Mas já não se os via mais. Não
naquelas manhãs sob o sol do quintal de nossa casa.
O que se via eram uns arbustos nanicos de folhagem miúda a se
estenderem de um lado ao outro do quintal. Um tipo de arbusto meio ramagem que
em vez de apontar o céu só se espalhava. Mas não eram apenas as folhas a
encaparem aqueles caules retorcidos. Também havia sobre eles uma camada de
flores como a formar um extenso tapete amarelo. Um tapete vivo a esconder sob aquele
amarelo de suas flores o verde das folhas que quase não se viam. Mas entre o
destaque de umas e o esconder das outras o que sobrava mesmo era a beleza que
me fazia encher os olhos frente à vivacidade daquele jardim sem consciência de
que o era.
Da varanda da cozinha, eu olhava admirada aquele retrato frente ao
qual eu me dava conta daquela mudança. Uma mudança na qual eu via o dedo de
Deus em sua bondade grandiosa para comigo. Tanto que fui conferir de perto
cheia de agradecimentos. Assim meus olhos percorriam aquelas flores que se
estendiam do meio do quintal até o encostar dos muros. E eu estava maravilhada.
Não apenas pela beleza que não parava de me encher os olhos. Mas principalmente
porque via naquela mudança uma facilidade aos meus arranques e cortes.
Afinal, eram apenas arbustos retorcidos de ramagens extensas. Não
havia tantas raízes assim. Em se arrancando uma, logo já não existiria grande
parte das ramas com suas folhas e flores. Logo aquela beleza toda murcharia e
retornaria ao pó da transformação ali mesmo sobre a terra do quintal, entre uma
pedra e outra. Então não demoraria muito e logo eu nem pensaria nelas, que
jazeriam sem forma em algum escaninho no mais profundo do meu esquecimento.
Assim seria.
Mas eu ainda estava em meio àquele deslumbre quando percebi algo que me fez admirar ainda mais aquele cenário. Admirar pelo espanto. Dei-me conta de que não havia uma borboleta sequer sobre aquelas flores. Então meus olhos percorreram aquele quadro ponta a ponta. Não pela beleza que já nem me tocava porque sumira com o espanto. Mas pelo inusitado da falta de borboletas sob o amarelo das flores. Afinal, onde há flores não há borboletas? Era o que eu costumava ver: as borboletas voando sob a alegria do perfume e do néctar das flores. Uma alegria que as fazia pulular entre uma flor e outra, pousando aqui e acolá entre um néctar e outro. Nada disso eu via naquele meu jardim que então eu sabia: era sem cheiro nem néctar já que não atraía as borboletas.
AS LAGARTAS DENTRO DE MIM
Ainda ensimesmada com aquele inusitado, senti de repente uma
alegria incontida abrindo caminho dentro de mim. Então um sorriso irrompeu na
minha boca com aquela alegria que não se continha. Um grito ecoou para além
daquele quintal, tamanha a força irrompida. Um grito pleno daquela alegria:
“meu Deus, se não há borboletas é porque não há lagartas!”.
A razão daquela alegria estava na suposição de que eu não teria as
lagartas como obstáculos aos meus arranques e cortes daqueles pezinhos
retorcidos de mato. Eram as lagartas as suas protetoras. Elas me impediam de
avançar seja como fosse, com a machadinha ou com as mãos ou qualquer outra
ferramenta. Elas me faziam correr e não mais voltar.
No mesmo instante, porém, senti aquela alegria se transformar e adentrar
o caminho de minhas entranhas. Meu sorriso esvaneceu. Um novo espanto e uma
estranha sensação me fez curvar o corpo com os braços envoltos ao meu estômago.
Aquele espanto crescia e meus olhos apenas se arregalavam frente à minha
repentina descoberta: “Meu Deus, as lagartas estão é dentro de mim!” O grito ecoou
meio abafado de mim para mim mesma.
Inundada naquela sensação, corri para a varanda da cozinha com meu
corpo encurvado. Meus braços não se descolavam de meu estômago. Eu o apertava
como a impedir que as lagartas saíssem. Mas não. É que era uma sensação
estranha demais. Eu as sentia realmente se revirando dentro de mim. Tanto que
me faziam enrolar o corpo sobre mim mesma. Era também o horror que aquela
sensação me provocava. E não eram apenas lagartinhas.
Eram as lagartas do pé de manga. Aquelas enormes que tantas vezes
me fizeram pular e correr ao mesmo tempo; gritar e repuxar a roupa como se elas
estivessem por todo o meu corpo. Então naquele instante era lá que elas estavam.
Mas do lado de dentro. Era o que a minha imaginação mostrava. Todas elas se
revirando dentro de mim. Um cenário de horror que não me causava o medo de
outrora, mas aquela estranha sensação. Aquele cenário do qual eu não tinha como
fugir. Apenas me revirar na curvatura do meu estômago como a me resignar com
tamanho infortúnio.
Na resignação, eu tentava encontrar em Deus uma resposta: “meu
Deus, o que é isso?!” perguntava entre um remexer e outro. Eu me sentava toda
curvada, mas logo seguia caminhando entre um lado e outro daquela varanda. Não
conseguia me conter naquela inquietude. Lembrei então do Kafka que num certo
dia ao acordar se viu transformado numa barata. Apesar de lembrar, não
encontrei relação entre uma coisa e outra. Eu não havia me transformado como
ele. Apenas sentia a estranheza daquelas lagartas se revirando dentro de mim.
Mas pensar em transformação foi o suficiente para o sininho da
compreensão ecoar em mim como uma constatação certa e indubitável. Também um
espanto: “meu Deus, eu vou passar por uma transformação!” Entendi então que se as lagartas estavam em
mim, eu era o casulo. Era uma transformação que se gestava naquilo tudo.
Então logo vi o dedo de Deus se revelando em meu casulo. Eu sabia que era coisa de Deus. Mas estava longe de entender que a transformação já se iniciara. Que Deus já atuava e seus processos já se encaminhavam. Eu é que não sabia. Mas uma coisa era certa: não havia lagartas. Não no quintal de nossa casa. Nem dentro de casa como outrora. Não que eu visse. Estavam era dentro de mim.
DEUS EM MEU CASULO
Transcorriam os primeiros meses de dois mil e dezenove. As chuvas já
haviam se despedido. Mas a terra ainda estava molhada, a vegetação renovada, a
folhagem brilhando. Também no quintal da nossa casa. Mas por Deus, pelo menos
ali, não havia lagartas. Pelo menos aos meus olhos.
Naquele início de ano eu já observara a ausência daquelas lagartinhas
que em anos anteriores não paravam de adentrar a varanda da cozinha. A partir
das primeiras horas da manhã e se prolongavam pelo dia todo. Lagartinhas
rápidas em seu requebrar serelepe e correr ligeiro. Tampouco eu via aquelas maiores que só
queriam o dentro de casa. Também não as via nas plantas. Nem em minhas capinas.
Por isso, aquele era para mim um início de ano bastante atípico.
Eu via o quintal cheio de matos renovados com folhas brilhantes sem que meus
olhos esbarrassem em alguma lagarta. Acreditava que era devido à mudança do
tipo de vegetação do quintal. Mas e as plantas? As mesmas dos anos anteriores?
Também sem lagartas. Eu não entendia.
Então eu só agradecia a Deus por aquela bênção; por sua proteção.
Ele sabia do meu medo. Acreditei então que ele viera ao meu auxílio. Mais uma
vez. Naquele momento, trazendo-me alívio e tranquilidade em minhas tarefas diárias
de cuidar do quintal e dos jardins da casa. E quanto a isso, eram as lagartas o
meu maior obstáculo.
Mas somente quando vi as flores no quintal, aquele extenso tapete
amarelo de que falei na seção anterior, foi que percebi realmente o dedo de
Deus, a mão da Providência. Para mim, era inusitado demais vê tantas flores sem
borboletas junto a elas. Aquele cenário, porém, era apenas o caminho de Deus a
me revelar que eu passaria por uma transformação. Essa era a minha compreensão.
Mas o que eu não entendia era que o que eu via como futuro já era presente.
Os processos da minha transformação já haviam se iniciado desde o ano anterior.
Deus já agia, talvez até desde antes. Eu via as mudanças no quintal sem
perceber que eu também mudava. Somente dois anos depois é que eu entenderia aquele
processo. Até porque no dia seguinte àquele eu já nem lembrava daquelas vivências.
Afinal, não é assim a vida? Os acontecimentos de cada dia nos tomam e nos fazem
constatar que cada dia tem suas próprias dores. E as ações de cada dia vão
parar nos escaninhos do nosso esquecimento e a memória toma de conta. Comigo
foi assim.
Hoje, revivendo aquelas circunstâncias, vejo que o meu casulo
havia se iniciado no ano anterior com a minha tentativa de implementação do
projeto social Fazendo Valer o nosso Voto em 2018. Nas dificuldades daquela
tentativa, recorri a Deus. Parece que ele só esperava o meu sinal. Hoje sei. A
partir daí, foram várias as circunstâncias que me revelaram a ação de Deus em
minha vida. Deus já estava em meu casulo.
Em suas ações, passei a conhecê-lo melhor, a saber mais sobre ele. Senti então germinar em mim uma nova compreensão de mundo; um desmoronar dos meus aprendizados e uma construção de novos e reconstrução dos antigos. Eu já não tinha certeza das minhas certezas. Por isso, uma necessidade imensa de afirmar outras verdades se engendrou em mim. E nisso, Deus assumiu o seu lugar em minha vida. Hoje, não sei viver sem falar dele, sem o ter como referência.
CONCLUINDO...
Os acontecimentos da vida nos capturam de tal forma que muitas
vezes nos impedem de ver a ação de Deus em nossa vida. Isto porque nos tornamos
humanos demais e como humanos demais somos tendenciosos a acreditar que
necessitamos apenas de nós mesmos para fazer as coisas acontecerem.
Como humanos demais orientamos o nosso olhar sempre no mesmo
sentido de uma determinada direção: aprendemos a olhar para as coisas grandes e
não para as pequenas; para cima e não para baixo; sempre em frente e não para
os lados. Assim nos diz o nosso conhecimento humano: olhe o grande, e seja um
grande; olhe para cima, e ganhe o alto; siga em frente, e chegará aonde deseja.
Com esse olhar direcionado pelo humano demais muitas vezes não
enxergamos Deus, que pode estar nas pequenas coisas e não nas grandes; que pode
estar lá embaixo, no tropeço do pé, e não em cima; que pode estar de um lado ou
de outro e não lá na frente; que pode estar na travessia e não no final.
Em meu novo modo de ver as coisas, aprendi a ver as pequenas
coisas, até porque foi nessa pequenez que minha vida se restringiu nesses
últimos anos. Grande parte das vezes. A pequenez das ações ordinárias do dia a dia, do cuidar da casa, do quintal,
das plantas. Então aprendi a ver o dedo de Deus nas ações do meu cotidiano. Então
foi fácil reconhecer Deus nas mudanças no quintal, na ausência das lagartas, no
meu casulo.
Não quero dizer com isso que não devamos pensar o grande, olhar
para cima, seguir em frente. O problema é que pelo olhar do humano demais no
pensar o grande, no olhar para cima, no seguir em frente nem sempre Deus é o grande que se busca nem o pódio que se deseja alcançar nem o lugar lá na frente onde se deseja estar . Ou é?
A você,
meus agradecimentos.
Deus
esteja com você!
Sônia
Ferreira
Teresina, 06
de agosto de 2021.
Você
terminou de conhecer o quinto conteúdo do Caminho Atos de Fé em Deus.
Espero que
tenha gostado e acompanhe os conteúdos da sequência.
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