sábado, 14 de agosto de 2021

Policiamento e controle no espaço urbano de Teresina: do disciplinamento a ações diferenciadas da polícia.

 

Imagem com o gato Mardoqueu apresentando o conteúdo "Policiamento e controle no espaço urbano de Teresina"


POLICIAMENTO E CONTROLE NO ESPAÇO URBANO DE TERESINA

DO DISCIPLINAMENTO A AÇÕES DIFERENCIADAS DA POLÍCIA*

Sonia Maria Ferreira Lima**

Antônia Jesuíta de Lima***

 

RESUMO: Este artigo refere-se à atuação da polícia militar no espaço urbano de Teresina, procurando explorar suas formas de intervenção à medida que se expande a cidade e se intensificam os conflitos sociais. Dividido em três seções, focaliza, inicialmente, a atuação da polícia na relação com a urbanização, evidenciando suas formas de inserção na cidade e seu desempenho como força controladora de comportamentos. Posteriormente, caracterizam-se estratégias de policiamento que refletem um planejamento operacional no qual o espaço urbano é esquadrinhado conforme horários de risco considerados mais ou menos propensos à prática delituosa, a partir dos quais se definem os percursos da ação vigilante da polícia. Em seguida, a partir das noções de centro e periferia, demonstra-se que as áreas centrais consolidam-se como espaços de proteção, assegurando, assim, ações preventivas regulares, enquanto a periferia naturaliza-se como espaço de comportamentos desviantes e, assim, constrói-se com uma exigência intrínseca de ação mais repressiva da polícia.

Palavras-chave: Policiamento. Trabalho Policial. Espaço Urbano.

 

RESUMEN: En este artículo se refiere a las acciones de la policía militar en la zona urbana de Teresina, para explorar sus métodos de intervención como la ciudad se expande y se intensifican los conflictos sociales. Dividido en tres secciones, concentrándose inicialmente en el papel de la relación de la policía con la urbanización, lo que sugiere formas de integración en la ciudad y su rendimiento y fuerza de control de comportamientos. Más tarde, caracterizado estrategias policiales que reflejan una planificación de las operaciones en las que esté sujeto a control del espacio urbano como horarios considerará delito más o menos propensas al riesgo, de las que definen las rutas de acceso a la acción vigilante de la policía. Luego, basándose en los conceptos de centro y la periferia, se demuestra que las áreas centrales se consolidan como áreas de protección, asegurando así regular las acciones preventivas, mientras que la periferia se nacionalizó como un área de la conducta desviada, y por lo tanto se construye con una exigencia intrínseca de más acción de la policía represiva.

Palabras claves: Vigilancia. La labor policial. Espacio Urbano.

 

INTRODUÇÃO

Sempre que a violência urbana é chamada à discussão, as organizações policiais ganham evidência, já que o seu papel de mantenedora da lei e da preservação da ordem pública as associa diretamente a essa questão. Em tal contexto, tornam-se inevitáveis as cobranças quanto ao enfrentamento desse fenômeno, tanto em relação à qualidade da atuação policial, quanto aos investimentos em segurança pública, sobretudo com ampliação de recursos materiais e efetivos, além de estratégias e práticas utilizadas para o controle do crime e consequente restabelecimento da ordem pública. Inclusive, é na proteção desta que o Estado mostra a sua capacidade de regular a ordem social, o que se dá à medida que se demonstra coercitivo àqueles que tentam descumprir as normas.

Não é sem razão, portanto, que manter a ordem torna-se uma função essencial de governos, o que faz das organizações policiais instituições singulares na administração pública pela posição central que ocupam no seu funcionamento, pois, para manter a ordem, é preciso impor restrições à liberdade individual ainda que pelo uso da força física, característica essa que lhes dá legitimidade no desempenho de sua função. É essa característica, intrínseca aos governos, que Weber (2006) considera fundamental no Estado moderno que, uma vez comunidade humana e dentro dos limites de determinado território, reivindica o monopólio do uso legítimo da força física, destituindo desse direito quaisquer indivíduos, a não ser os estatalmente autorizados.

No grau de abrangência conceitual da Segurança Pública, definida na Constituição brasileira de 1988, são as polícias militares as instituições responsáveis pela preservação da ordem pública, que constitui o objetivo principal do policiamento ostensivo, definido legalmente como a ação na qual os policiais são reconhecidos pelo uso da farda, viatura e equipamentos específicos de atuação (BRASIL, 2000, 1985). Como atividade por excelência de controle e vigilância do espaço urbano, é o policiamento ostensivo que torna as polícias militares um ator estratégico nas paisagens urbanas, já que “[...] poucas agências públicas têm penetração tão constante nos mais diversos ambientes de uma cidade, mantendo contato frequente com seus habitantes em variados estratos” (BEATO; SILVA; TAVARES, 2008, p. 688). Entretanto, embora se trate de uma ação comum e peculiar às polícias militares dos diversos estados federados, sua operacionalização é conforme as demandas locais, pois são essas que conferem conteúdo às atividades realizadas, o que torna essas organizações relativamente distintas na sua forma de enfrentamento aos desafios que lhe são propostos, dada às peculiaridades da realidade em que atuam.

Por isso, este artigo restringe-se à atuação da Polícia Militar do Piauí (PMPI) na cidade de Teresina, procurando explorar a sua intervenção no espaço urbano à medida que se expande a cidade e se agudizam os conflitos sociais. Inicialmente, focaliza-se a sua atuação na relação com o processo de urbanização, evidenciando-se as suas formas de inserção no cotidiano da cidade e o seu desempenho no papel de força repressora, vigilante e controladora de comportamentos. Posteriormente, caracterizam-se procedimentos e estratégias de policiamento que refletem uma forma de planejamento operacional que esquadrinha o espaço urbano baseado numa concepção bivalente de policiamento ostensivo pela qual as áreas centrais da cidade, por dispor de maior concentração de bens, como rede bancária e comercial, consolidam-se como áreas mais atrativas à violação da ordem e, assim, asseguram-se como espaços de proteção mediante ações preventivas regulares, como a tradicional ronda e as paradas obrigatórias de viaturas em pontos estratégicos da cidade. As áreas periféricas, ao contrário, naturalizam-se como espaços que se presumem propensas a comportamentos desviantes e, assim, constroem-se com uma exigência intrínseca de ação mais vigilante da polícia, efetivadas através de operações como a batida e o arrastão, ações ostensivas e intensamente repressivas que se tornaram comuns no espaço urbano teresinense.

Essa dupla concepção da atuação policial-militar determina tanto as formas díspares de distribuição do policiamento na cidade, quanto o agir e a maneira pela qual os policiais tecem significados acerca da sua ação, dos lugares onde atuam e dos sujeitos com os quais interagem no seu cotidiano de trabalho. Dessa forma, em vez de uma atuação mais voltada para a mediação de conflitos, como se poderia supor dada à exigência do novo contexto sociopolítico pós-Constituição de 1988, a periferia urbana depara-se, especialmente, com formas repressivas de controle efetivadas em ações ostensivas de policiamento que refletem, sobretudo, a visão da elite econômica teresinense sobre os distintos segmentos sociais que compõem a cena urbana. Inclusive, esse olhar diferenciado tem acompanhado pari passu a organização do espaço urbano de Teresina, caracterizada, originalmente, por uma política de afastamento dos pobres do centro da cidade, num processo de periferização que se consolidou como única via, tornando a periferia o habitat “natural” dos pobres urbanos e o locus privilegiado da ação repressiva da polícia. 

 

INSERÇÃO POLICIAL NO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO DE  TERESINA 

A inserção da polícia como instituição de controle social no cenário urbano de Teresina acompanha o processo inicial de urbanização da cidade, entre o final do século XIX e início do XX, quando se torna premente para a elite teresinense a criação de um projeto urbanístico modernizador para disciplinar a vida pública e os espaços da cidade, interferindo, assim, no comportamento de seus habitantes com o estabelecimento de novas regras de conduta (ARAÚJO, 1997).

Desde então, torna-se crucial um novo padrão de organização do espaço urbano pelo qual o Estado estende progressivamente seu raio de ação à medida que a cidade cresce, o que ocorre não apenas pelas leis de ordenamento da cidade, como o Código de Posturas, mas também pelas intervenções infraestruturais, assistenciais e policiais (ARAÚJO, 1995), cabendo à polícia o controle do comportamento da população e, ao mesmo tempo, a proteção da propriedade.

A intervenção da polícia no espaço urbano se dá num período em que é visível o quadro de miséria da população, expresso nas condições de moradia e nas ruelas disformes dos subúrbios, compostos basicamente de casas de palhas onde se abrigavam as famílias pobres. Produto da migração do interior do estado e de outras regiões do Nordeste, o aumento significativo de pobres amplia a concentração demográfica na cidade e contribui para o aumento dos conflitos sociais. O crescimento populacional e a ausência de condições estruturais compatíveis com o viver digno para muitos de seus habitantes levam Teresina a conviver, desde o início de sua urbanização, com situações de conflitos interpretadas pelo pensamento dominante como decorrentes da pobreza urbana.

Nesse contexto, a ação policial volta-se precipuamente para os migrantes e trabalhadores pobres privados das condições mínimas de sobrevivência. Em razão das poucas oportunidades de trabalho, o apelo a formas marginais de vida apresenta-se como única alternativa para muitos dos que habitam a cidade. Assim, num contexto em que é cada vez mais visível a presença de desempregados, subempregados e mendigos nas ruas, a polícia é convocada a coibir os abusos e garantir a ordem e a segurança pública, assumindo posição importante no projeto urbanístico modernizador. Inclusive, nas primeiras edificações da cidade, constam a Cadeia Pública e o Quartel do Corpo de Polícia (atual Polícia Militar), evidenciando a relevância dessa instituição para a ordem urbana e deixando implícita a idéia de punição aos que infringissem as normas e a de (re)disciplinamento ao convívio social (PINHEIRO FILHO; PINHEIRO, 1975).

Aliás, a criação de condições para o exercício da polícia associa-se à visão da elite teresinense sobre o comportamento da população pobre como uma desordem, de modo que, nesse papel de vigilância e de controle, a polícia cumpre uma diversidade de tarefas ligadas à administração da cidade e à “boa ordem”, sendo-lhe comum a presença nas praças, ruas, festas e eventos públicos, contribuindo com a moralidade pública e monitoramento de casas de jogos e de prostituição.

Como o projeto urbanístico revestiu-se em mudanças pouco expressivas na cidade, sua proposta disciplinadora prolonga-se até as primeiras décadas do século XX. As marcas do imaginário “progressista” e “modernizador” permanecem nos discursos e na prática da elite local em prol de transformações infraestruturais da cidade. Além disso, como capital, tornava-se imperativo à Teresina adequar-se ao cenário de urbanização do país num momento em que várias cidades brasileiras passavam por reformas no espaço urbano.

Por isso, integrava o seu projeto de organização do espaço urbano uma estratégia de afastamento dos pobres do centro da cidade, numa forma de segregação que se tornara comum aos processos de urbanização das cidades brasileiras a partir do final do século XIX, evidenciando um espaço urbano extremamente desigual, com as áreas segregadas refletindo a complexa estrutura social de classes e não representando nada mais que o Estado atuando na organização espacial da cidade. Por se tratar de força de produção e produto das relações sociais e econômicas, o espaço torna-se um instrumento político de suma importância para o Estado, que o utiliza para assegurar o controle social e a manutenção da hierarquia, proporcionando, assim, tanto a homogeneidade como a segregação das classes (LEFÈBVRE, 1991). Pode-se dizer, então, que a natureza da organização espacial vincula-se intrinsecamente ao Estado.

Em Teresina, essa forma de segregação caracteriza-se, historicamente, pela distribuição das áreas residenciais conforme os graus de diferenciação social: enquanto as classes dominantes comumente habitavam áreas privilegiadas, geralmente próximas ao centro da cidade, às pobres eram destinadas as mais precárias e distantes. Aliás, os primeiros regulamentos da cidade já traziam a proibição da construção de casas de palha – a moradia dos pobres – no espaço delimitado como centro da cidade (NASCIMENTO, 2002; ARAÚJO, 1995).

 Porém, a resistência e a falta de condições dos moradores pobres em elevar suas casas a “padrões modernos” – alvenaria e cobertura com telhas – fazem com que os primeiros anos da década de 1940 ainda encontrem um cenário urbano repleto desse tipo de moradia. Inclusive, é a partir desses anos que Teresina passa a vivenciar, com mais frequência e intensidade, uma onda de incêndios a atingir casas de palha desde décadas anteriores. Entretanto, se originalmente tais incêndios eram vistos como acidentais, desde então passam a ser associados à ideia de modernização, que expressava o pensamento oficial de afastar as casas de palha do centro e dos subúrbios. Dada a resistência dos moradores à lei, os incêndios eram vistos como um meio de as autoridades obrigarem os pobres a cumprir o que a legislação por si só não conseguia.

Essa fase inicial do processo de urbanização é permeada por intensa repressão e violência, com a polícia montando “[...] esquema de vigilância nas áreas com maior densidade de casas de palhas” (NASCIMENTO, 2002, p. 244), pois a ordem era não deixar que os moradores adentrassem aquelas em chamas para recuperar seus pertences. Além disso, as investigações acerca dos incêndios eram permeadas de arbitrariedades e violência: nas prisões efetuadas forjavam-se confissões por tortura, com a simples suspeição levando inocentes à morte.

Essas práticas indicam que a intervenção policial no cotidiano da cidade, desde sua origem, deu-se num clima de medo, intimidação e maus-tratos. Revelam como se estruturou a força policial em Teresina, consolidando-se como instrumento de controle e manutenção do poder utilizado especialmente contra a população pobre. Afinal, a polícia se insere no espaço urbano teresinense com a missão original de defensora da modernidade, com a tarefa básica de vigiar, punir, reprimir e controlar os pobres e incivilizados, que deveriam adequar-se ao viver numa cidade moderna.

A política de afastamento dos pobres do centro da cidade, sob o olhar vigilante da polícia, acentua-se à medida que se impulsiona a urbanização da cidade, que começa a se consolidar definitivamente a partir da década de 1950, em decorrência de transformações na economia nacional e regional, que incidem na esfera produtiva local, provocando alterações na estrutura urbana (LIMA, 1996; FONSECA, 1983). Desde então, a zona Sul se sobressai como a mais desenvolvida, por concentrar as estradas que ligam Teresina ao sul do estado e ao resto do país, as instalações da Companhia Hidrelétrica de Boa Esperança (COHEBE) e o primeiro grande conjunto habitacional da Capital – o Parque Piauí – com mais de duas mil moradias, constituindo-se, assim, “[...] num dos principais vetores de crescimento da cidade [...] [e] o local preferencial para a habitação das camadas de baixa renda” (FONSECA, 1983, p. 54). Por outro lado, torna-se também a região de maior concentração de conflitos por ocupação e uso do solo urbano devido ao grande número de favelas.

Frente ao aumento dos problemas sociais decorrentes desse processo, não apenas se acentua o controle social, com a consequente expansão do aparelho policial na cidade, como também se amplia sua estrutura nas áreas de maior concentração de pobres, notadamente nos espaços ou nas proximidades das favelas. Não é aleatória a instalação do 3º Distrito Policial no bairro Vermelha que, entre os anos de 1960 e 1970, passa a concentrar um conjunto de favelas que se estende pelos bairros Tabuleta e São Pedro, na zona Sul (FONSECA, 1983; LIMA, 1996). Da mesma forma, em 1983, instala-se uma Companhia da Polícia Militar no conjunto habitacional Promorar (POLÍCIA MILITAR DO PIAUÍ, 2008), construído especialmente para os antigos moradores dessas favelas.

A instalação dessas unidades de polícia é representativa da preocupação governamental com os conflitos decorrentes da concentração populacional, o que leva à ampliação da intervenção policial como mecanismo de controle da vida urbana. A matriz originária dessa forma de urbanização com fortes traços segregadores e excludentes de determinados setores, e consequente distribuição do aparelho policial nas periferias, viria a acompanhar o desenvolvimento das demais regiões – Norte, Leste e Sudeste –, proporcionando a todo o corpo policial um saber e um modo de pensar específicos sobre os diferentes espaços da cidade e os segmentos sociais a serem policiados, vigiados, controlados ou protegidos.

Se até a década de 1970, Teresina passa por um acelerado processo de urbanização e contínuo crescimento demográfico, nos anos de 1980 assiste a sua desaceleração, apesar do crescimento permanecer elevado (LIMA, 1996), com a população urbana passando de 98.329 habitantes em 1960, para 339.042 em 1980 (IBGE, 1960, 1980). No decorrer desses anos, aprofundam-se as distorções na cidade, já que os programas e projetos implantados concentram “[...] suas ações em determinados setores econômicos e sociais e em áreas pontuais, em detrimento das demandas da grande massa populacional empobrecida (LIMA, 1996, p. 29).

A partir da década de 1980 intensificam-se as lutas por moradia, com o crescimento das ocupações urbanas que, por serem consideradas ilegais, tornam-se alvo frequente da repressão policial. Reportando-se a um desses conflitos, Silva (2005) assevera que, para os ocupantes, a polícia representava o instrumento legítimo de repressão do Estado, visto como o principal responsável pela negação do direito à moradia e à cidadania aos pobres, de modo que o sucesso da ocupação residia na capacidade de resistir à polícia.

A questão da moradia expunha uma faceta da problemática social urbana que se gestava desde anos anteriores, eclodindo a partir da luta por efetivação de direitos facultada pela redemocratização do país em 1985 e pela promulgação da Constituição de 1988 (LIMA, 2003), levando a polícia a se inserir nesse processo com frequente atuação repressiva junto às iniciativas populares de ocupação de áreas urbanas. Mesmo com a intervenção policial, avança a luta pela moradia nesse período, impondo à cidade uma nova imagem em termos de segregação urbana, já que vilas e favelas passam a se concentrar não apenas nas periferias, mas novamente em núcleos centrais da cidade, expandindo-se por todo o espaço urbano, e se colocando lado a lado com a imponência das construções nobres do mercado imobiliário destinadas aos setores de maior poder aquisitivo (LIMA, 2003).

Com a nova configuração urbana, vilas e favelas continuam a concentrar o olhar vigilante da polícia, até porque, tradicionalmente, os pobres desses espaços passam a ser vistos não “[...] como parte integrante na renovação e na transformação da sociedade [...] [mas] como ‘incivilizados’, ‘violentos’ ou ‘bandidos’” (SILVA, 2005, p. 92). Inclusive, torna-se cada vez mais recorrente a associação desses lugares ao crime e à violência, enfatizada sistematicamente na mídia televisiva, cujos programas policiais especializam-se, sobretudo, na divulgação de práticas de crime e violência protagonizadas por moradores das periferias.

Em detrimento dessa associação, a partir da década de 1980 verifica-se na cidade um significativo aumento de demandas pela ordem e aplicação da lei, decorrente, sobretudo, de indicativos de aumento do crime, de sorte que a partir da segunda metade da década de 1990 a polícia amplia, significativamente, a sua estrutura operacional de policiamento ostensivo, com a criação da maioria dos Batalhões da Polícia Militar (BPMs) hoje existentes, cuja descentralização operacional representa o esforço governamental em adequar sua estrutura de controle e vigilância com vistas à preservação da ordem pública nas dinâmicas que a cidade evoca. Para o alcance dessa função, cria e atualiza procedimentos de prevenção e repressão na operacionalização de suas atividades ostensivas, como meios de coibir infrações reais ou potenciais, de modo a possibilitar garantias de segurança à população. Sendo assim, a seção seguinte demonstra como se realizam essas atividades em Teresina, caracterizando as ações de policiamento, inclusive com a identificação de suspeitos no espaço público.

 

ESQUADRINHAMENTO DO ESPAÇO URBANO E AÇÕES DE POLICIAMENTO NA CIDADE 

A sistematização de informações sobre as ocorrências registradas diariamente pela polícia, através do Centro de Operações Policiais-Militares (COPOM)[1] produz, mensalmente, relatórios estatísticos que a subsidiam na definição de prioridades de ações e de estratégias operacionais para a sua execução. Esses relatórios possibilitam a criação do “cartão-programa”, que consiste no planejamento das rotinas diárias de policiamento ostensivo a partir da identificação dos espaços com maior incidência de delitos – os “pontos críticos” – a partir dos quais se definem as principais ações preventivas e diuturnas de rondas e pontos básicos (PBs) e as ocasionais, como a batida e o arrastão, nas quais se intensificam as abordagens com revista pessoal.

O cartão-programa reflete o esquadrinhamento do espaço urbano, atribuindo-lhe horários de risco nos quais especifica as ações a realizar-se por cada guarnição em locais e tempos prévia e estrategicamente definidos. Com a tradicional ronda, a polícia percorre os “pontos críticos” da cidade numa ação vigilante e alerta, alternando-a com os PBs, ou seja, pontos de parada obrigatória nos quais permanece por um determinado tempo entre uma ronda e outra, em franca visibilidade, pela necessidade mesma de o policiamento ser percebido pela população.

Por se tratar de atividades que se repetem diuturnamente nas ruas da cidade, rondas e PBs visam não apenas assegurar a tranquilidade pública, mediante os mecanismos legais de preservação da ordem, mas também constituem um constante e contínuo colocar-se à disposição da população, conforme as suas necessidades, sendo esses os espaços de atendimento a ocorrências diversas, o que torna o trabalho policial-militar um campo aberto a múltiplas possibilidades. Consistem, pois, em atividades imperativas quanto ao tempo, ao lugar e ao efetivo envolvido, embora não se refiram especificamente à natureza das tarefas a serem realizadas, pois são lugares do imprevisto, do contingente, da ocorrência singular e imprevisível (MONJARDET, 2003), o que amplia as possibilidades do trabalho policial, pois tudo pode acontecer.

A batida e o arrastão, por sua vez, ocorrem em períodos ocasionais, especialmente nos finais de semana em determinados bairros ou áreas específicas da cidade, com o objetivo de intensificar as medidas preventivas que, a priori, visam à identificação de suspeitos no espaço público para impedir atos delituosos. Consistem, pois, em ações intensamente repressivas de abordagem com revista pessoal a um conjunto de indivíduos concentrados em determinados estabelecimentos, geralmente bares e churrascarias, ou dispersos em vias públicas, nas quais se vistoriam transeuntes, ciclistas, motociclistas e veículos, geralmente visando à busca de objetos ilícitos, como drogas e/ou armas de fogo, e são tanto mais rotineiras quanto mais haja necessidade de respostas da polícia às exigências de segurança da população.

Como principais ações ostensivas da polícia, funcionam como dispositivos de inibição ao ato delituoso, e o que basicamente as diferencia é a abrangência da área sob intervenção e o aparato policial envolvido. Enquanto a batida é mais concentrada, por exemplo, em estabelecimentos específicos de um determinado bairro, o arrastão tanto pode ocorrer em bairros isolados, como pode abranger um conjunto de bairros contíguos, revelando-se como um conjunto de batidas sucessivas. Como ações preventivas e de controle, primam pela racionalização e, assim, surgem na articulação entre poder e saber, já que o poder cria objetos de saber, e os faz emergir acumulando informações que passam a ser utilizadas pelo próprio poder (FOUCAULT, 2007). Fundamentam-se, pois, num tipo específico de saber oriundo de todo o capital simbólico acumulado institucionalmente (BOURDIEU, 1996), inclusive acerca da cidade e do seu povo, o que possibilita a definição das estratégias que lhe asseguram a atuação. Esse saber caracteriza-se ainda, como diz Muniz (1999), como um tipo de saber em estado de alerta, presente em cada evento como parte indissociável da trajetória de vida e experiências individuais vividas pelos policiais que, a partir de um lugar vigilante, aprendem a observar os demais personagens da cena urbana, configurando-se, pois, como um tipo de saber que se descobre atento ao menor indício de “anormalidade” e que se põe em busca do que, à primeira vista, parece “fora do lugar”, “incorreto”, “indevido” ou “inadequado”. 

Como estratégias de prevenção ao ato delituoso, constituem espaços privilegiados da abordagem, que se efetiva na interface entre polícia e suspeito já que, originalmente, é o que mobiliza a ação da polícia na interação com o público, a partir da interceptação de pessoas no espaço público com vistas à identificação de ilícitos. Inclusive, a abordagem pode ser acompanhada ou não de busca pessoal e/ou vistoria veicular, até porque, com grau de repressão variável, os procedimentos utilizados variam conforme a situação e a avaliação dos policiais sobre a pessoa abordada. Assim, em situações nas quais os policiais a realizam pela sua própria condição de autoridade legal da fiscalização da ordem, apenas identificam a pessoa, pedem seus documentos, explicam o motivo da abordagem, que pode ou não ser seguida de busca pessoal, e a liberam em seguida, caso não identifiquem ilícitos em seu poder (PINC, 2007).

De outra forma, quando se trata de abordagem a pessoa sob fundada suspeita ou infratora da lei, a busca pessoal é fundamental e os procedimentos mais repressivos e passíveis de saque da arma. Para cada caso, pois, uma postura diferenciada do policial. Entretanto, em nenhuma circunstância o procedimento inicial requer contato físico entre policial e pessoa abordada. O contato só deve ocorrer no momento em que se inicia a revista pessoal, quando, então, o policial deve estar assegurado, inclusive, da sua segurança. Até esse momento, é a verbalização que deve conduzir a ação. Como diz Pinc (2007, p. 18), a “[...] interação entre o vistoriador e o abordado inicia-se por meio do comando verbal [...], [pois] a verbalização é determinante para que o abordado se posicione no lugar e na posição indicados [...]”, de modo que o policial não precise gesticular para indicar o lugar e a posição devidos.

Em quaisquer circunstâncias em que ocorra a abordagem, a suspeição torna-se possibilidade central, pois o sujeito interceptado e interpelado pela polícia é isolado do conjunto social como suspeito de praticar algo que, aliás, pode não ser do seu conhecimento. Assim, a suspeição subjaz a toda atividade preventiva da polícia, embora não se restrinja a ela, já que se propaga por todas as esferas informais de convívio social (MUNIZ, 1999). Entretanto, é no âmbito do crime, da transgressão da ordem, que ela emerge como questão policial, o que a torna uma categoria associada à violação da lei e um recurso inevitável do cotidiano ostensivo da polícia.

De qualquer modo, de onde quer que se origine, a abordagem projeta no indivíduo a desconfiança, a dúvida, o alerta de perigo, o que já o torna um pouco “outro”, entendido como detentor de um poder transgressor pelo próprio estado de transformação que o acomete, dada à atitude ou característica que o evidencia como suspeito. No âmbito policial, então, uma vez abordado, o sujeito é colocado na linha divisória, num rito de passagem que, ao tempo em que o institui como suspeito, também o diferencia e o separa da ordem social (BOURDIEU, 1996). Como suspeito, consagra-se ou institui-se nele um indicativo de diferenciação pela prática de um ilícito que pode ou não ser confirmada.  Mas, conforme as circunstâncias, até que a seja, a diferença consagrada pode-se consolidar, tornando-se conhecida e reconhecida pelo sujeito investido e pelos demais que o apontam.

No entanto, em quaisquer situações de identificação de suspeito, o sujeito só o é a partir do olhar e do dito de outrem, que o aponta e o qualifica conforme a suposta ação por ele praticada ou em vias de praticá-la. Como diz Maffesoli (1996), no quadro de socialização que a cidade evoca, é o olhar e o dito dos outros que nos constitui e delimita o território onde nos reconhecemos. No quadro específico da atividade policial, esse outro pode ser tanto a polícia, como qualquer cidadão lesado pelo suposto suspeito, ou que o tenha identificado em atitude de suspeição, ou ainda que o tenha apontado com base em estereótipos associados a indivíduos cuja conduta estranha aos padrões vigentes o coloca na condição de suspeito.

Não é sem razão, pois, que as atividades de ronda, batida e arrastão constituem espaços por excelência da identificação de suspeitos e, assim, próprios à realização de abordagens. Além disso, são ações definidas a partir de uma noção de comportamento previsível do potencial transgressor e, por isso, circunscrevem “[...] um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro” (CERTEAU, 2007, p. 99), ou seja, a polícia sabe tanto acerca do transgressor, que pode prever os seus horários, percursos, hábitos, e, assim, pode-se manter à espreita em pontos estratégicos e/ou nas rondas, ou enfrentá-lo diretamente no seu “habitat” através de batidas e arrastões. Afinal de contas, no cotidiano da cidade, ele pode estar tanto entre os transeuntes e nos locais de maior concentração populacional, quanto nos escurinhos das ruas, nas esquinas, nos bares e restaurantes.

Dessa forma, as ações de policiamento preventivo, especialmente a ronda, configuram-se como um domínio dos lugares pelo olhar, pois a divisão do espaço urbano permite uma prática panóptica capaz de transformar o estranho em objetos que se podem observar, medir, controlar e, assim, igualmente passíveis de prever, antecipando-se ao tempo pela leitura mesma do espaço (CERTEAU, 2007). Como diz Muniz (1999), uma vez policial militar é preciso saber fazer a leitura das ruas, de modo a aprender reconhecer o que se passa, pois, só assim, é que se adquire o “olho técnico” e o “faro” policial. O olhar possibilita ao policial construir no aqui e agora de uma ronda um seletivo processo de observação que enquadra no seu campo de vigilância a ordem pública cuja preservação lhe é (re)atribuída todos os dias no planejamento diário definido institucionalmente como cartão-programa.


CENTRO E PERIFERIA COMO ESPAÇOS DE AÇÕES DIFERENCIADAS DA POLÍCIA 

As noções de centro e periferia constituem dois eixos a partir dos quais os policiais elaboram representações sobre o espaço urbano de Teresina e sobre os distintos sujeitos que demandam a intervenção da polícia, e são determinantes na distribuição do policiamento ostensivo na cidade, que se dá de forma diferenciada e baseado, de um lado, nas idéias de prevenção e repressão que acompanham essas noções e, de outro, na compreensão acerca de suspeitos de práticas delituosas.

As áreas centrais, que podem ser tanto o centro da cidade quanto o dos bairros mais desenvolvidos, tendem a assegurar atividades policiais preventivas de modo mais permanente e regular, por dispor de redes comerciais e bancárias, ou seja, da propriedade dos setores abastados. As áreas periféricas, ao contrário, além de não dispor dessas redes, apresentam demandas mais voltadas a conflitos interpessoais e familiares, inclusive associadas ao uso do álcool, o que as coloca num nível de exigência distinta à das áreas centrais no que se refere à intervenção policial, já que não se configuram como zonas de proteção.

Como economicamente mais desenvolvidas, as áreas centrais constituem, pois, espaços com uma exigência intrínseca de proteção e, assim, maior grau de responsabilidade e respostas mais efetivas da polícia, que se impõe o dever de protegê-las naturalmente, tanto que, na distribuição das ações preventivas, primeiro assegura parte dos recursos a esses espaços e, com o restante, procura atender à periferia. Com isso, perde de vista o fato de que tais organizações bancárias e comerciais têm dono e que, em última instância, a proteção policial é assegurada a pessoas economicamente mais privilegiadas. Na visão policial, esses setores são concebidos como se estivessem acima da sociedade e, por isso, o direito ao policiamento aparece como algo intrínseco à sua condição, não precisando eles chamar a polícia em sua necessidade, pois, de antemão, ela já está lá para os servir, ao contrário da sociedade comum que, quando dela necessita tem que chamá-la.

Assim concebida a ação preventiva, a maneira pela qual a sociedade poderia dispor, naturalmente, da proteção policial, seria colocar-se no interior das organizações bancárias e comerciais, pelo uso que fazem delas, pois, como diz um policial ao justificar a concentração do policiamento nessas áreas, “[...] até mesmo a própria sociedade vai estar lá.”[2] Além disso, a ideia de que centro e periferia dispõem de demandas distintas e, por isso, necessidades de intervenção policial diferenciadas, contribui para que o policiamento destinado àquele seja focado na prevenção, enquanto o desta, na repressão.

Essa forma bivalente de conceber a operacionalização das ações é ancorada numa concepção cristalizada de policiamento ostensivo pela qual a PMPI é levada a atuar preventivamente em áreas consideradas potencialmente atrativas a práticas delituosas, e atuar repressivamente em áreas nas quais se constate a violação da ordem. Tal concepção tem sua origem na sua missão institucional, que corresponde à própria competência das polícias militares brasileiras, definida no Decreto-Lei nº 667/1969 e pela qual essas organizações são levadas a “atuar de maneira preventiva, como força de dissuasão em locais ou áreas específicas, onde se presuma ser possível a perturbação da ordem [...] e atuar de maneira repressiva, em caso de perturbação da ordem [...]” (BRASIL, 1985a, p. 33).

Por conseguinte, o centro da cidade configura-se como espaço predominante do policiamento preventivo, pois, além de concentrar os serviços comerciais e bancários, também se consolida como o lugar que atrai “todo tipo de pessoa”, inclusive as da periferia, sendo, pois, um desses lugares de passagem, de movimento intenso, o que o torna, aos olhos da polícia, um espaço que precisa ter seus bens vigiados e protegidos. A periferia, ao contrário, é um lugar das próprias pessoas que o habitam, um lugar de gente localizada e localizável e que, sem concentração de comércio e bancos, torna-se sem atrativos para forasteiros, especialmente criminosos que “estão atrás de dinheiro, atrás de coisas”, como diz um policial. Esse fato a torna o espaço privilegiado do policiamento repressivo.

Não sem razão, pois, essas noções de centro e periferia influenciam a distribuição do policiamento na cidade a partir da compreensão policial sobre a investigação de crimes e identificação de suspeitos. No centro da cidade, um espaço de deslocamento no qual as pessoas “estão ali de passagem”, os crimes que porventura ocorram, dificultam a identificação do suspeito e, consequentemente, a investigação, já que as pessoas desses espaços são anônimas e indiferenciadas ou, como diz DaMatta (1993, p. 29) ao caracterizar o mundo da rua: “[...] indivíduos sem nome nem face” que, a um só tempo, são todos povo e ninguém, apenas massa deslocada dos locais de origem. Ao contrário, quando os delitos ocorrem na periferia facilitam a investigação, porque se supõe que o suspeito esteja entre os que ali residem.

Assim, a ideia de periferia como um lugar de pessoas localizáveis ou de fácil localização sugere que a possibilidade de êxito na solução de delitos lá cometidos é maior do que no centro da cidade, já que este é um espaço que não se define nem pelo identitário nem pelo relacional, mas pela individualização solitária, pela passagem, pelo provisório e pelo efêmero, o que o constitui como um “não-lugar” (AUGÉ, 1994). Já a periferia é o lugar onde é possível um “reconhecer-se aí”, onde as pessoas se tornam passíveis de um discurso, de um diagnóstico e de serem não apenas conhecidas, mas reconhecidas, nominadas e identificadas.

Além disso, as noções de centro e periferia remetem a um movimento de “dentro” e “fora” do campo da ação preventiva da polícia ou do espaço a ser protegido. Ao se projetarem como partícipes da dinâmica urbana, já que em constante deslocamento, as pessoas de fora, que estão ali de passagem, configuram-se como um “outro”, o estranho, o descontínuo, o diferente, o anormal, não reconhecido no lugar a ser protegido e, por isso, visto com desconfiança e suspeição, até mesmo devido à tendência a pontos de vista diferentes e passíveis de resistência. Como diz Pelbart (2000, p. 59), apoiando-se em Deleuze, “as forças do fora [...] colocam o pensamento em estado de exterioridade, jogando-o num campo informal onde pontos de vista heterogêneos, correspondentes à heterogeneidade das forças em jogo, entram em relação.” É contra as possíveis ações delituosas desse agente estranho à dinâmica interna da área comercial e bancária que a polícia mobiliza o seu aparato preventivo em termos de ronda e pontos básicos (PBs). Assim, ao procurar “sufocar os pontos críticos”, a ronda cria trajetos para interceptar os do Outro, os de Fora, tentando inibir devires subversivos e contrários à ordem.

Dessa forma, a ideia de policiamento preventivo, distinto de seu caráter repressivo, termina por delimitar lugares para os distintos sujeitos que compõem a cena urbana, pois enquanto o centro da cidade é representado como um espaço a ser protegido, com exigências de medidas acauteladoras, a periferia surge como o locus privilegiado do infrator, já que, como afirma um entrevistado, ele está entre “as pessoas que estão ali, que residem ali” e não entre as “que passam por ali”.[3] Uma vez no centro, então, o infrator configura-se como o Outro, o não desejável contra o qual se mobiliza o aparato policial preventivo, inibindo-o da prática delituosa e levando-o de volta à periferia, onde é o seu lugar, pela ausência mesma de ações preventivas.

Assim concebida, a periferia não é vista como geradora de atividades econômicas, como o centro urbano, mas espaço permissivo às práticas delituosas, até porque, uma vez que a ronda e os pontos básicos constituem-se numa barreira ao delito nas áreas centrais, resta ao infrator praticar as ações delituosas dele nas periferias que, ao contrário do centro, não dispõem do policiamento preventivo que lhes poderia proteger. Por conseguinte, se as periferias são vistas como espaços de ações delituosas, também se constituem como lugares permissivos a ações mais repressivas da polícia, pois, afinal, não é lá onde estão os supostos suspeitos? Não é para lá que se deslocam os infratores?

Percebe-se, com isso, uma lógica subjacente nas operações de policiamento ostensivo pela qual as áreas de periferia, por não dispor de ações preventivas, facultam a ação delituosa com uma incidência que não ocorre no centro ou nas áreas nobres. Não sem razão, pois, o que se sobressai nesses espaços é um policiamento predominantemente repressivo, com uso mais acentuado de força nos procedimentos de abordagem, pois a ação policial é imbuída da representação de que os sujeitos ali são violentos ou propensos à violência. Afinal, não habitam os “pontos críticos” da cidade? Não estão em lugares cujas estatísticas revelam maior incidência de crimes? É assim que um entrevistado justifica a diferença de procedimentos no agir policial entre os diferentes sujeitos e espaços da cidade, afirmando que “os fatos e as estatísticas é que falam”,[4] utilizando-se de um discurso atenuador da violência praticada no exercício da atividade policial contra determinados cidadãos.

Assim, enquanto nas áreas centrais sobressai-se um policiamento preventivo e protetor, com as tradicionais rondas ostensivas, nas periferias é o policiamento repressivo que se destaca, pelo qual a polícia procura alcançar a prevenção mediante ações concentradas de batida e arrastão. E isso se justifica pelo maior registro de ocorrências entre as classes de menor poder aquisitivo que, segundo policiais entrevistados, são as que mais denunciam à polícia os delitos sofridos e, assim, as que, efetivamente, conferem demandas à polícia, mantendo-a sempre em pauta e, por isso, assegurando visibilidade às questões de segurança pública. Como a denúncia constitui a base das estatísticas que fundamentam a polícia no planejamento de suas ações de policiamento, torna-se o ponto de partida para a intervenção numa determinada área, pois, como visto, são as estatísticas que orientam tanto a elaboração do cartão-programa, com os itinerários diários de ronda e as paradas obrigatórias ou pontos básicos, quanto a definição de ações ocasionais de batidas e arrastões em determinados espaços da cidade.

Ocorre, porém, que, se os bairros da periferia são os que mais registram ocorrências, por denunciar mais os danos sofridos, supõe-se que sejam eles os que mais necessitem de ações preventivas de policiamento. No entanto, não as têm de forma regular e sistemática como as áreas centrais que, pela concentração de bens e serviços com exigência intrínseca de proteção, tornam-se prioridades, o que as leva a concentrar tais ações, deixando à periferia o discurso amenizador de que a ausência ou deficiência de policiamento preventivo é motivada pela limitação de recursos. Por outro lado, essa suposta limitação é compensada especialmente em finais de semana com ações predominantemente repressivas, ou seja, os moradores da periferia denunciam os danos sofridos, ampliando as estatísticas, mas, em vez de policiamento preventivo diário têm como resposta operações ocasionais e, não raro, violentas.

O policiamento na cidade termina sendo uma via de mão dupla, na qual se tem, de um lado, o preventivo, mais voltado para a proteção de espaços economicamente favorecidos e, de outro, o repressivo, dedicado especialmente aos que despontam como perigosos ou violentos, pois, afinal, não são seus moradores que, com suas denúncias corriqueiras, os apontam como detentores de práticas de crimes? No primeiro caso, o que mobiliza a ação policial é a necessidade de zelar pelos bens privados, daí a distribuição do aparato policial em rondas e pontos básicos (PBs), procurando-se assegurar a prevenção pela faculdade mesma da repressão, já que o aparato está lá para ser visto e, assim, impedir a ocorrência do crime. No segundo caso, é a repressão que mobiliza a ação policial: através dela se procura alcançar a prevenção mediante os procedimentos de abordagens com revista pessoal, o que se dá, especialmente, em ações intensivas de batida e arrastão. Assim, em última instância, as estatísticas servem, sobretudo, para justificar a ação repressiva da polícia em espaços de baixo poder econômico, já que as denúncias que as alimentam partem especialmente desses espaços, revelando-os com uma suposta identidade de sujeitos propensos à prática de atos delituosos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O controle social exercido pela polícia representa a participação do Estado na vida das pessoas em aspectos relacionados à violação da ordem e, consequentemente, ao seu pronto restabelecimento. Ocorre numa relação direta ao desenvolvimento das cidades, de modo que, em Teresina, acompanha pari passu a (re)organização do espaço urbano, que se realiza baseada numa política de afastamento dos pobres para as periferias, e ancorada na idéia de disciplinar comportamentos para o convívio social.

Nesse aspecto, a polícia assume papel importante nessa organização que, ao estabelecer regras de conduta e disciplina, e assumir uma forma periférica, mostra a visão da elite teresinense sobre os diferentes segmentos sociais, inclusive sobre o comportamento da população como uma desordem e a posição socioespacial que cada um deve assumir no contexto urbano. Sua inserção no cotidiano de Teresina inicia-se, pois, como uma proposta moralizadora e disciplinadora de comportamentos quanto ao bem-viver na cidade, e se acentua à medida que se intensificam os conflitos sociais que se evidenciam no vínculo entre cidade, pobreza e criminalidade, sendo esta a relação que mobiliza a ação de controle policial e a distribuição dos equipamentos policiais no espaço urbano, na qual se verifica a instalação em áreas que, originalmente, detêm maior concentração de pobres, comumente nas proximidades de vilas e favelas.

Esse fato poderia supor a garantia de segurança e tranquilidade a esses setores, dada a proximidade entre os equipamentos da polícia e a população local.  Entretanto, são setores que, a julgar pelas denúncias amiúdes de suas perdas, convivem diariamente com o roubo e o furto que, por não exercerem influência sobre a imprensa, não se tornam conhecidos do público mais amplo. Apesar disso, não dispõem do direito ao policiamento preventivo com a regularidade oferecida às áreas centrais e abastadas, cujos moradores já dispõem de amplos direitos assegurados, inclusive à infraestrutura urbana, como saneamento e iluminação pública. Inclusive, esse é um fator que alimenta o discurso policial-militar quanto à distribuição do policiamento na cidade, que vê a precariedade ou a ausência de urbanização em áreas da periferia como um entrave à atividade policial ostensiva, pela dificuldade mesma de acesso, como revela um entrevistado ao afirmar que “se não tem iluminação na periferia, se não tem vias de acesso para o carro passar, como é que a gente vai prestar um bom auxílio dessa forma?”[5]

O policiamento preventivo configura-se, então, como mais um direito concedido a quem já dispõe de uma urbanização mínima e necessária que possibilite o deslocamento e a movimentação do aparato policial, o que, quase sempre, é negado à periferia. Para esta, o que resta é um policiamento mais repressivo, no qual a polícia se arma, inclusive, de equipamentos especiais, como a cavalaria, para acessar espaços inviáveis às viaturas e, assim, melhor percorrê-las na busca de suspeitos, o que, quase sempre, se dá mediante as ações de batida e arrastões. Assim, a condição mesma de vulnerabilidade social acaba por constituir mais um fator contra o direito da periferia ao policiamento como proteção e segurança, e cada vez mais como repressão à prática delituosa ou controle do crime.

Esse fato sugere que, enquanto os pobres urbanos convivem com o deficit de cidadania devido à ausência da ação do Estado em relação à efetivação de direitos, por outro o Estado se faz prontamente presente através de mecanismos de controle e repressão empreendidos pela polícia. Inclusive, tradicionalmente tem sido essa a política que mais rápido e facilmente parece alcançar os pobres urbanos, considerando a precariedade de outras esferas da vida social, como o acesso a direitos sociais básicos, entre os quais o direito à infraestrutura urbana, vista como um meio de acessar o direito ao policiamento e à segurança pública.

Além disso, a compreensão de urbanizar para a polícia passar, revelada no discurso policial, sugere que ao governante cabe eliminar as barreiras que impedem as atividades de policiamento, viabilizando o acesso aos diversos espaços da cidade, o que, nas periferias, somente será alcançado com a reivindicação popular. Ao sugerir o pleito, os policiais partem de uma ideia naturalizada entre a população de que entre as classes pobres os direitos sociais, inclusive à segurança, têm que ser conquistados pela luta, já que, naturalmente, não lhes são concedidos, como o são às classes economicamente mais favorecidas, que nem precisam reivindicá-lo para tê-lo.

 

REFERÊNCIAS

 

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* Este artigo é parte da dissertação de mestrado “A polícia militar entre a prevenção e o atendimento à ocorrência: significados e nexos da prática de policiamento ostensivo em Teresina” apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí sob a orientação da professora Drª Antônia Jesuíta de Lima. Teresina: 2009.

** Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (2009) e Licenciada em Filosofia (1998) pela mesma universidade. E-mail: soniaferreira.smf@gmail.com

*** Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999) e Professora Titular aposentada da Universidade Federal do Piauí (2019). E-mail: a.je.l@uol.com.br

 

[1] O COPOM é o setor de coordenação das atividades de policiamento ostensivo na cidade, mediando a articulação entre as unidades de patrulhamento (viaturas, motos, etc.) nos distintos espaços da cidade e a população nas suas mais variadas necessidades.

[2] Tenente PM (1) em entrevista concedida no dia 16 de outubro de 2008.

[3] Capitão PM (4) em entrevista concedida no dia 29 de outubro de 2008.

[4] Soldado PM (4) em entrevista concedida no dia 23 de outubro de 2008.

[5] Capitão PM (2) em entrevista concedida no dia 12 de outubro de 2008.


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